A defesa dos Bores

G. K. Chesterton

“A Defence of Bores” (1902): in Lunacy & Letters.

Tradução de Raul Martins

chesterton_bio

NESTES DIAS a opinião universal, ou quase universal, é que o pecado imperdoável é ser um tédio. Esse é um erro profundo. Se temos mesmo de usar uma fraseologia assim terrível, poderíamos antes dizer, seguros, que o pecado imperdoável é entediar-se. O tédio é o grande pecado, o pecado pelo qual todo o universo tende continuamente a ser subestimado e termina por escapar-nos de todo da imaginação. Mas isto é uma qualidade de quem o sente, não de quem o produz. Há exatamente a mesma diferença entre sabermo-nos entediados e sabermos que outro homem é um tédio quanto há entre sabermo-nos assassinados e sabermos que outro homem é um assassino. Se de repente atravessam-nos uma bala pelo corpo em meio à rua Fleet, temos sólida sustentação lógica para declarar que, tomando o uso comum das palavras como base de nosso raciocínio, estamos, essencialmente falando, assassinados. Mas que o homem que nos meteu uma bala possa, como um todo, ser descrito como assassino é questão um tanto mais sutil, e enfia-nos de imediato nos emaranhados de controvérsias legais que se estendem até a Carta Magna e o código de Justiniano I. Ele pode em absoluto não ser, pessoalmente, um sujeito homicida. Pode ser que ele nos tenha dado um tiro em suposta autodefesa, tomando por um selvagem gesto de ataque o movimento gracioso com que convocamos um garboso táxi. Ele pode ter-nos baleado numa síncope abstrativa, iludido por nossa semelhança física com um alvo esférico em Aldershot. A condição de nós mesmos, quando baleados, é questão clara; a condição do homem que nos baleou é uma questão particularmente duvidosa, e pode ser qualquer coisa entre a diabrura e a criancice. A morte, em suma, é uma condição positiva e bem definida, mas pertence inteiramente à pessoa morta.

Similarmente o tédio, que é a condição mais próxima da morte, sendo uma queda de vitalidade, é uma condição positiva e definida, mas positiva e definida em relação à pessoa entediada. A pessoa que produz o efeito pode ser, no geral, um tédio, ou o oposto total. Ela poderia estar a explicar algo de um atrativo selvagem, ou ainda de um humor arrebatador. Dickens seria um tédio ao satiricamente retratar o Gabinete do Circunlóquio,¹ se estivesse a retratá-lo satiricamente para um Árabe Sudânes. O Sr. Gus Elen (aquele grande filósofo) haveria de ser um tédio se estivesse a imitar cada tom e gesto da marinha de South London a um hermita no Tíbete. Exatamente do mesmo modo pode haver muito de um interesse real no homem que estava, instantes atrás, a revelar aos nossos bárbaros ouvidos o romance das máquinas de costura ou a poesia ímpar da comida de gado…  A culpa, se a houver, é nossa, por estarmos entediados. O assunto não é de dar tédio; não há tal coisa no mundo como um assunto de dar tédio. O mero fato de que ele, nosso interlocutor, sujeito para toda a aparência mortal um tanto mais estúpido do que nós mesmos, tenha encontrado o segredo e capturado o charme daquele assunto, é demonstração suficiente de que a coisa não é eterna ou necessariamente de dar tédio; se ele pode excitar-se com o princípio da alavanca ou com a conduta abominável dos Robinsons, por que também nós não poderíamos? Estamos subjugados; ele é livre. Lá, numa frase, está sua final e incomensurável superioridade. O homem feliz é natural e necessariamente superior ao homem fatigado. A tristeza e inércia do entediado podem ser cultas e intelectuais, mas não têm como ser boas em si mesmas, qual o grandioso propósito, o luzente entusiasmo e a paradisíaca felicidade de quem é um tédio.

A verdadeira atitude em relação ao assunto poupar-nos-ia de um bom punhado de erros e pessimismo sobre este mundo em que vivemos. O pessimismo, que é, óbvio, principalmente e em quase todos os casos, o produto das classes ricas e ociosas, significa essencialmente isto: que o ocioso não é capaz de entender que os rigorosos e penosos detalhes que não lhe interessam possam possivelmente interessar a outras pessoas. Por as variações do couro ou as minúcias da fotografia amadora o entediarem, ele as supõe igualmente tediosas para todos os outros. A seu ver, uma coisa torna-se tediosa na medida em que absorve um homem e fecha-lhe outras questões. Isso é verdade em certo sentido social, mas no sentido psicológico último é o inverso exato da verdade, pois a absorção do homem às custas da exclusão necessária de outras questões mostra, não quão tedioso um assunto é, mas sim quão fascinante. Por um homem recusar-se a sair do Éden, assumem-no metido na prisão.

O ponto aparece com força imensa, por exemplo, na idéia comum de que a matemática é um assunto tedioso, ao passo em que o testemunho unânime daqueles que têm-lhe qualquer trato exibe-a como um dos assuntos mais excitantes, atraentes e encantadores do mundo. É coisa abstrata, mas de igual modo, para todas as aparências, também é a teologia. Homens se arremessaram contra lanças inimigas em vez de admitir que a segunda pessoa da Trindade não era co-eterna com a primeira. Homens se deixaram queimar, polegada por polegada, em lugar de permitir que a comissão entregue a Pedro lhe havia sido entregue como a um indivíduo e não como a um representante dos Apóstolos. De questões assim é perfeitamente razoável para qualquer um dizer que, em sua opinião, são coisas absurdas e próprias a fanáticos. E resta-me pouca dúvida de que o que homens fizeram outrora pelas abstrações da teologia, eles fariam também, se necessário, pelas abstrações da matemática. Se a história e variedade humanas nos ensinam qualquer coisa, é supremamente provável que homens os há que prefeririam antes tomar uma lançada ou serem queimados a admitir que três ângulos de um triângulo podem, juntos, ser maiores do que dois ângulos retos.

O fato é que perfeitamente permissível e de todo natural entediarmo-nos com um assunto, tanto como é perfeitamente permissível e de todo natural cairmos de um cavalo, ou perdermos um trem, ou espiarmos a resposta de um enigma no final de um livro. Mas, longe de ser um triunfo, se for algo em absoluto, é uma derrota. Por certo não nos é dado assumirmos, de antemão, que a falha está no cavalo ou no assunto. Um excelente exemplo pode ser encontrado na revolta contra a família que anda a rebentar em quase todos os lugares atualmente; nos inumeráveis milhões de gênios e temperamentos absolutamente excepcionais que estão a rejeitar as reivindicações da família por estas só lhes darem incompreensão ou tédio. Por certo em alguns casos isolados eles estão corretos; em quase todo caso podem concebivelmente estar corretos. Mas, por baixo de tudo, fica-nos a trevosa e profunda convicção de que estas secessões de repente diminuíram quase até ao nada se, por um simples instante que fosse, os dissidentes considerassem o tédio uma falha deles em vez de uma falha da família. E, não obstante, a verdade é essa. Uma briga de família, por exemplo, pode ser coisa um tanto esquálida e cansativa se ocorrer de, naquele momento, estarmos adoentados ou exaustos, ou, noutras palavras, de estarmos, naquele momento, nós mesmos, esquálidos e cansados. No entanto, decerto, uma briga familiar não é desinteressante em si e por si. Todo aquele que jamais tenha tido de lidar com qualquer sorte de colisão entre os interesses e emoções de quaisquer cinco ou seis seres humanos deve, segura e claramente, estar certo disto: [de que seria preciso a pena de Balzac para que seus caracteres fossem retratados adequadamente; de que a caridade ética e Herbert Spencer seria necessária para definirem-se suas reinvidicações; de que apenas Shakespeare poderia encarnar suas emoções e Deus somente julgar suas almas.

Que ninguém fique a se gloriar de deixar a família para buscar a arte ou o saber; deixam-na numa fuga do desconcertante saber da humanidade e da impossível arte da vida. Ele pode estar certo, mas não se deve dizer que ele desistiu por a Sra. Brown não lhe dar simpatia, ou porque o Tio Jonas era um tédio, ou porque a Tia Maria não o compreendia. Antes, deve-se dizer que ele, um tanto perdoavelmente, falhou em notar a primorosa fragrância do caráter da Sra. Brown; que ele, um tanto perdoavelmente, não enxergou a turva porém delicada coloração da alma do Tio Jonas; que ele, um tanto perdoavelmente, não conseguiu compreender a Tia Maria. Entediar-se é o pecado, não ser um tédio. Dada a fraqueza da humanidade, podemos permitir aos homens revoluções, emancipações e o romper de laços. Mas o homem forte, o ideal, interessar-se-ia por qualquer círculo em que, no curso da natureza, viesse a cair. O herói seria sujeito de todo domesticado; o Super-Homem sentar-se-ia aos pés de sua avó.


¹ – O Gabinete do Circunlóquio, que, segundo Dickens, contém em si “toda a Ciência do Governo”, faz parte do capítulo 10 de seu romance Little Dorrit, e é um retrato satírico da ineficácia burocrática do Governo.

Deixe um comentário