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A-Divina-Paródia-de-Dom-Quixote

É O DESTINO PECULIAR que cabe às coisas com centenas de anos de idade que nós tenhamos de tratá-las com a mais prodigiosa austeridade mesmo quando são, em si mesmas, perfeitamente hilárias e simples. Veneráveis doutores da Igreja passam as vidas a estudar antigos potes e panelas romanos, cujas réplicas lhes vão penduradas nas próprias cozinhas, e a editar e anotar antigas pantomimas gregas que haveriam de peticionar, em nome da decência pública, ao Conselho do Condado, para que fossem banidas e proibidas.

À mente apenas literária soa-lhe coisa tão ociosa tratar Dom Quixote como assunto para eruditos quanto tratar tal qual The Bab Ballads ou The Innocents Abroad. A literatura celebra a juventude eterna da humanidade; na literatura, todos os homens são iguais, em século tanto quanto em posição. Os sentimentos com que lida estão sempre frescos; em seu extravagante império um inglês pode apaixonar-se por uma antiga princesa egípcia, e de acordo com suas leis um homem pode tomar por esposa a sua avó. Pode-se ler Dom Quixote a uma criança sem prefácios ou explicações; a história conta a sua própria história; e se lhe há mais do que a maior parte de nós jamais ali encontrou, há que se buscar o segredo obscuro na história e não nas notas de rodapé.

A segunda parte de Dom Quixote, que é no geral relegada a posição inferior à primeira, é-lhe na verdade superior em muitos aspectos de construção e verossimilhança, ainda que lhe esteja abaixo quanto a episódios ridículos, à força burlesca e aos efeitos mais óbvios do humor. Eu me abalanço, porém, a questionar se a superioridade que Goethe e Lamb lhe encontraram na primeira parte baseava-se apenas naquele pitoresco absurdo que dá ao torneio dos moinhos de ventos e ao castelo-boteco aquele viço eterno. Provável é que a primeira parte seja superior por nela haver mais da brasa daquela filosofia essencial que arde no peito deste grande romance. A fim de o compreendermos de fato temos que trazer à mente a energia espiritual de que, como em todos os livros, a história é apenas o produto e o símbolo.

A grandiosa verdade que está no coração mesmo de Dom Quixote é a verdade que o conflito do mundo é, principalmente, um conflito entre bens. A batalha que travam o idealismo de Dom Quixote e o realismo do dono da taberna é peleja tão calorosa e incessante que dali saímos certos de que ambos têm de estar com a razão. Uma filosofia vulgar se põe a lamuriar a perversidade do mundo. Quando, porém, entramos a refletir um pouco, logo notamos que a confusão da vida — que a sua dúvida e turbilhão e responsabilidade vertiginosa — resulta sobretudo da  enorme quantidade de bem que há no mundo.

Há muito a se dizer a favor de todos; há pontos de vista demais; verdades demais a se contradizerem umas às outras, amores demais que se odeiam uns aos outros. A nossa terra não é, como disse Hamlet, um “jardim inculto”, mas sim jardim sufocado pela desordem de flores negligenciadas. A eterna glória de Dom Quixote no mundo literário é ele lograr balancear perfeitamente mesmo estas duas escalas: o misticismo do Cavaleiro e o racionalismo do Taberneiro. Por debaixo de toda a perspicácia superficial e o júbilo paupável da história há uma outra sorte de ironia, tanto mais profunda — e tanto mais velha. Mais velha do que o mundo. É a ironia que nos diz estarmos a viver num mundo enlouquecedor e desnorteador, no qual vamos bem; e que a batalha da existência desde sempre tem sido qual a batalha do Rei Arthur em meio à neblina, em que “amigo tombava amigo, sem saber a quem tombava.”

Eis aí idéia excelente para se criar juízo, e de modo algum lúgubre. Dificilmente poderá haver livro mais humano e inabalável do que Dom Quixote, mais imbuído duma suposição larga e elemental de que a natureza humana é boa. Os fios de nossa vida se vão cruzando e emaranhando, mas não somos nós que lhes seguramos as pontas. A filosofia de Cervantes alardeia ao mundo a ciência, muito mal-entendida e a cada dia mais esquecida, porém divina e salutar sempre, de se cuidar da própria vida. Defende o grandioso e mui pragmático paradoxo de que o menor dos deveres calha de ser também o maior; que é muitíssimo universal assar um bolo ou balançar um berço, e geralmente muitíssimo vulgar e provincial tomar para si o controle do universo. Esta enorme hospitalidade do cérebro de Cervantes, esta prontidão a admitir que a ilegalidade mesma não era outra coisa senão uma guerra de uma centena de justiças, é o que lhe dá o seu enorme lugar na literatura.

O que lho dá não é, em qualquer nível preeminente, seu estilo. O lugar que lhe cabe Cervantes o deve ao fato de esta sua imparcialidade ser a alma da grande literatura, pois o papel da literatura é conhecer todos os homens e julgar homem algum. Julgam-se os mortos, e as criaturas da literatura jamais deveriam morrer.  

Pode-se encontrar exemplo de coisa que está na mesma posição inescrutável e portanto eterna de Dom Quixote nas Bacantes de Eurípides. Ali também estamos às voltas com uma guerra travada por um senso comum robusto e justo contra um feroz, fugidio e inclassificável arroubo religioso. Ali, também, no final ficamos sem saber quem estava certo, e sem saber se o autor daquela peça obscura a escrevera como um entusiasta beato ou um cético escarnecedor. Em Dom Quixote, contudo, a questão se faz mais clara. O cavaleiro andante pertence à nossa civilização, e entre esta civilização e a civilização antiga há um largo abismo. A loucura de Dom Quixote se nos afigura menos maluca do que a sanidade da antiguidade. As fanfarradas e disparates que o fizeram arremeter contra moinhos de vento e aniquilar ovelhas nos são menos monstruosas e imbecis do que muito amor e tradição seguidos, em plena luz do dia, por filósofos os mais sublimes nas ruas de cidades as mais sublimes. Pois o cerne da questão é que as loucuras de Dom Quixote nos correm nas veias; somos, e isto irrevogavelmente, filhos da Idade Média. A aventura e o ritualismo, o cavalheirismo e a idolatria, um orgulho espantoso e uma humildade tão espantosa quanto estão embrenhados no que há de mais íntimo e entranhado em nossa imaginação. Cervantes, a brandir um realismo intrépido, fez o seu herói bailar uma dança de degradação por através das armadilhas e das encruzilhadas de intenções deste mundo selvagem, fê-lo rolar em fossos e lhe espancou o lombo com porretes. Mas o fato é ainda o mesmo: nós lemos Dom Quixote pois somos, todos, cavaleiros andantes; lemo-lo pelo sonho de Dom Quixote, e sem este sonho a história inteira haveria de ser tão enfadonha e ordinária quanto as crônicas de Camden Town.

Dom Quixote, pois, é parte de todos nós, e parte aliás que nunca se irá embora e haverá de dar m bom bocado de trabalho a quem nos queira amarrar para sempre em qualquer constituição política ou filosofia sintética. O cavaleiro lhe perpassa o romance como o inimigo daquela civilização que julga ser o melhor remédio para todas as coisas entregá-las a uma instituição. Na história ele é o último indivíduo; lhe corre pelas veias o individualismo dos irlandeses. Se injustiça está a ser feita não lhe parece nem um pouco menos razoável cortar o malfeitor ao meio do que escrever uma carta à Sociedade para a Prevenção de Crueldade com Crianças. Confiar a base inteira de nossa civilização a esta justiça algo boçal já seria absurdo; porém ainda mais absurdo, a longo prazo, será ignorá-la ou arrancá-la pela raiz. Pois o todo deste nosso mastodonte colossal de leis e restrições pende, no final, deste único fio de valentia visionária. O nosso ideal social é tão ousado e fabuloso quanto os desvarios de Dom Quixote, e não há muito a se escolher entre a sua investida contra os moinhos e a nossa investida contra a enorme roda do Mundo.