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A história de Hudge e Gudge

G. K. Chesterton
O Que Há de Errado com o Mundo
Editora: Ecclesiae

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Digamos que exista em Hoxton um cortiço imundo, vertendo doenças e minado pelo crime e pela promiscuidade. Digamos que existam dois nobres e corajosos rapazes de puras intenções e – se o leitor preferir – de nobre nascença. Chamemos-lhes Hudge e Gudge. Digamos que Hudge seja do tipo alvoroçado. Ele diz que as pessoas devem, a todo custo, ser tiradas desse antro. Para tanto, ele arrecada e contribui com dinheiro, mas então se dá conta de que, apesar dos gordos rendimentos dos Hudges, a coisa terá de ser feita da maneira barata se a quiserem ver logo pronta. Assim, ergue uma fileira de habitações coletivas de muitos andares, quais colméias; e não tarda a ver os pobres todos encaixotados nas minúsculas células de tijolo, que são definitivamente melhores do que os antigos alojamentos, pois que os novos estão protegidos das intempéries, são bem ventilados e têm água limpa.

Gudge, contudo, tem uma natureza mais delicada. Ele sente que falta algo aos pequenos caixotes de tijolo, algo inominável. Levanta inúmeras objeções. Ele critica vigorosamente o celebrado Relatório Hudge com um Relatório da Minoria Gudge. E, mais ou menos ao final de um ano, chega a dizer acaloradamente a Hudge que as pessoas eram muito mais felizes onde viviam antes. Como as pessoas preservam em ambos os lugares o mesmo ar de aturdida amabilidade, é bastante difícil saber quem está certo. Mas pelo menos pode-se dizer com segurança que ninguém jamais gostou do mau cheiro ou da inanição enquanto tais, mas somente de alguns prazeres peculiares agregados a eles. Mas Gudge não pensa assim. Muito antes da batalha final (Hudge versus Gudge e Outro), Gudge conseguiu convencer-se de que os cortiços e o mau cheiro são na verdade coisas muito encantadoras. Convenceu-se também de que fora o costume de dormirem quatorze pessoas num quarto o que fizera a grandeza de nossa Inglaterra e de que o cheiro dos fossos abertos é absolutamente essencial para a edificação de uma raça viking.

Mas, enquanto isso, não terá Hudge se corrompido? Ai, temo que sim! Aqueles edifícios loucamente feios que ele originalmente erguera como barracões despretensiosos com o único fim de abrigar vidas humanas tornam-se cada dia mais encantadores a seus olhos iludidos. Coisas que ele jamais teria sonhado defender, exceto por dura necessidade, coisas como cozinhas comuns ou infames fornos de amianto, começaram a parecer-lhe sagradamente brilhantes pelo simples fato de refletirem a fúria de Gudge.

Amparado por impulsivos livrinhos socialistas, ele sustenta que o homem é realmente mais feliz numa colméia do que numa casa. Ele chama de “fraternidade” a impossibilidade prática de expulsar completos desconhecidos de seu quarto. E atrevo-me a dizer que chama de “esforço” a necessidade de escalar vinte e três lances de frios degraus de pedra. Eis o resultado líquido de sua aventura filantrópica: um passou a defender indefensáveis cortiços e ainda mais indefensáveis proprietários de cortiço, enquanto o outro passou a divinizar os barracões e encanamentos cuja construção fora uma desesperada medida de emergência. Gudge é hoje um velho tory do Carlton Club, corrupto e apoplético. Se lhe falam de pobreza, ele urra com voz grossa e rouca algo que se conjectura ser “por que não vai você ajudá-los?”. Tampouco Hudge está feliz: é agora um vegetariano magricela de barba grisalha e pontuda, portador de um sorriso fácil e nada natural. Vive a dizer a todo o mundo que pelo menos dormiremos todos num único quarto universal, enquanto habita uma cidade-jardim, como alguém de quem Deus se esqueceu.

Essa é a lamentável história de Hudge e Gudge, que apresentei apenas como um exemplo do interminável e exasperante mal-entendido que está sempre a ocorrer na Inglaterra moderna. Para tirar os homens dos cortiços, põem-nos numa habitação coletiva; e, a princípio, a alma humana saudável detesta ambos. O primeiro desejo de um homem é escapar do cortiço para o lugar mais longe possível, ainda que essa louca corrida o leve a uma habitação modelo. Seu segundo desejo é, naturalmente, escapar da habitação modelo, ainda que isso o leve de volta ao cortiço. Entretanto, não sou nem hudgiano nem gudgiano, e creio que os erros dessas duas personalidades famosas e fascinantes surgiram de um fato muito simples: nem Hudge nem Gudge pensaram sequer por um instante no tipo de casa que um homem gostaria de ter para si. Em suma, não partiram de um ideal; portanto, não são políticos práticos.

Agora podemos retomar o propósito de nosso desairoso parêntese sobre os louvores do futuro e os fracassos do passado. Uma vez que a casa própria é o ideal óbvio de todos os homens, podemos nos perguntar – tomando tal necessidade como modelo para todas as outras – por que ele não a conseguiu e se isso se deu, num certo sentido filosófico, por culpa dele. Ora, penso que, num certo sentido filosófico, isso se deu por culpa dele. E, num sentido ainda mais filosófico, penso que isso se deu por culpa de sua filosofia. E isso é o que agora tentarei explicar.

Burke, um excelente retórico que raramente enfrentava a realidade, disse – se bem me lembro – que a casa de um inglês era seu castelo. Isso é francamente engraçado: o inglês é talvez o único homem na Europa cuja casa não é seu castelo. Em quase todos os lugares fora da Inglaterra aceita-se a propriedade do camponês; aceita-se que um homem pobre pode ser um senhorio, conquanto seja senhor apenas de sua própria terra. Fazer do senhorio e do arrendatário a mesma pessoa tem lá suas vantagens: o arrendatário não terá de pagar aluguel e o senhorio trabalhará um bocado. Mas não me interessa agora defender a pequena propriedade, senão recordar que ela existe em quase toda a parte, com exceção da Inglaterra. Mas também é verdade que esse regime de pequenas propriedades atualmente está a ser atacado em toda a parte. Nunca existiu entre nós e corre o risco de ser destruído entre nossos vizinhos. Temos, pois, de nos perguntar o que foi que – nos negócios humanos em geral e neste ideal doméstico em particular – arruinou a natural criação humana, especialmente neste país.

O homem sempre se perdeu. É um vagabundo desde o Éden. Mas sempre soube – ou julgou saber – o que estava buscando. Todos os homens têm uma casa em alguma parte do elaborado cosmos; sua casa espera-o incrustada entre os vagarosos rios de Norfolk ou dourando ao sol das dunas de Sussex. O homem sempre esteve à procura daquele lar que é o tema deste livro. Mas, sob a gélida e cegante tempestade do ceticismo à qual foi sujeitado por tanto tempo, pela primeira vez ele começa a sentir o resfriamento, não só de suas esperanças, como também de seus desejos. Pela primeira vez na história, ele começa de fato a duvidar do objetivo de seu vagar pela terra. Ele sempre se perdera; mas agora perdeu o próprio endereço.

Sob a pressão de filosofias de certas classes altas – em outras palavras, sob a pressão de Hudge e Gudge –, o homem médio desnorteou-se completamente quanto à finalidade de seus esforços; e assim seus esforços ficaram cada vez mais débeis. A simples intenção de ter uma casa própria foi ridicularizada e tachada de burguesa, sentimental ou abjetamente cristã. Sob diversas formas verbais, recomendaram-lhe continuar nas ruas – o que se chama individualismo – ou ir para as casas de trabalho – o que se chama coletivismo. Consideraremos esse processo mais detidamente daqui a pouco. Mas pode-se dizer aqui que a Hudge e Gudge, ou à classe governante de maneira geral, nunca faltará uma frase moderna que justifique sua antiga predominância. Os grandes senhores recusarão ao camponês inglês seus três alqueires e uma vaca por motivos progressistas se não o puderem fazer por motivos reacionários. Negar-lhe-ão os três alqueires sob o pretexto da propriedade estatal; negar-lhe-ão a vaca sob o pretexto do humanitarismo.

E isso nos leva à derradeira análise desta influência singular que frustrou as demandas doutrinais do povo inglês. Creio que ainda haverá quem insista em negar que a Inglaterra é governada por uma oligarquia. Para mim, basta saber que, se um homem tivesse dormido há uns trinta anos sobre o jornal do dia e acordado na semana passada sobre o jornal do dia, ele julgaria estar lendo exatamente sobre as mesmas pessoas. Em um jornal encontraria um lorde Robert Cecil, um sr. Gladstone, um sr. Wyndham, um Churchill, um Chamberlain, um Trevelyan, um Buxton. No outro encontraria um lorde Robert Cecil, um sr. Gladstone, um sr. Wyndham, um Churchill, um Chamberlain, um Trevelyan, um Buxton. Se isso não é ser governado por famílias, não consigo imaginar o que seja. Suponho que seja ser governado por extraordinárias coincidências democráticas.

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