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A TESTEMUNHA DA VERDADE ABSTRATA

Por Hilaire Belloc.

(Discurso proferido no Thomas More Memorial, em julho de 1929, antes da canonização do mártir)

Venho falar-vos hoje sobre o Beato Tomás Moro, e venho falar dele sob um só aspecto; pois o que um homem pode dizer nos breves momentos de um discurso público não deve, sobre tal assunto, tocar mais de um aspecto, para que seu público não fique confuso. Mas esse aspecto é certamente o principal em relação a tal nome.

Venho falar-vos da natureza do seu sacrifício; não da sua vida, da sua erudição, do seu humor, da sua grandeza mundana, do seu declínio voluntário dela; não da bondade do Beato Tomás Moro, que ele deu e recebeu; nem da múltipla humanidade que tem cativado naqueles que menos compreendem o seu último e tremendo ato. Pois todos devemos lembrar que se tornou moda, entre os que menos compreendem ou menos amam a Igreja Católica, fazer certas exceções a seu favor. Por assim dizer, bodes expiatórios ao contrário. Eles citam, na história, um ou dois católicos da grande multidão de mártires, confessores, médicos e simples santos, tudo para não falarem dos católicos comuns, a quem se negam louvar; há o Santo Francisco de Assis, porque ele gostava de animais; há (para alguns deles) São Bernardo, porque ele impediu um motim contra os emprestadores de dinheiro; e há o bem-aventurado Tomás Moro – porque quando você está elogiando Cranmer, Henrique seu mestre e, pelo que eu sei, o próprio Thomas Cromwell, você deve ter algum contrapeso para parecer liberal, de mente aberta. E o abençoado Tomás Moro está lá, pronto para se entregar.

Tudo isso, eu confesso, eu desprezo como merece ser desprezado. E eu em estou aqui para falar daquelas outras maravilhas suas, que merecidamente louvamos, e pelos motivos certos – seu amor à justiça e aos pobres, seu desprezo pela riqueza, sua autodisciplina na vida, seu alegre suportar do fardo deste mundo – mas apenas da maneira como é retratado.

O que estou aqui hoje para enfatizar é isto – o Bem-aventurado Tomás Moro morreu em defesa de uma verdade específica e solitária, porque era a verdade nua e crua, e por nenhuma outra razão. Ele não fez um sacrifício disto ou daquilo – e ele tinha feito muitos sacrifícios – ele não desistiu, pois os homens heróicos desistem ao nosso redor, dia após dia, de posição, renda e do conforto daqueles que lhes são mais caros, em favor da Fé. Abandonou a própria vida, voluntariamente; aceitou a morte violenta como um criminoso, não só pela Fé como um todo, mas por um pequeno ponto particular da doutrina – a saber, a supremacia da Sé de Pedro.

Deixe-me agora discutir a magnitude deste ato. É de grandeza suficientemente excelsa que ele tenha sido sustentado por um ponto isolado da verdade. Mas havia muito mais. Foi um sacrifício sem estímulo exterior.

É isso que desejo afirmar, reafirmar, repetir, e repetir novamente. Isto é o que desejo testemunhar e que, se eu tivesse o poder, faria prevalecer em cada história. Não que este homem único tenha abdicado de muito por sua consciência; que, para honra da humanidade, miríades têm feito e farão. Nem mesmo que ele tenha desistido da própria vida por essa causa. Nem sequer que ele tenha desistido dela por um artigo isolado entre tantos. Mas sim que ele encontrou, dentro de si mesmo, o necessário para assim agir, sem qualquer apoio: foi um triunfo da vontade.

Agora consideremos como os homens são sustentados, em seus raros heroísmos.

Há, em primeiro lugar, o apoio daqueles que, mais fracos que o próprio mártir, lhe desejam o bem; daqueles para quem ele é um símbolo, e a quem se voltam secretamente como a um estandarte, e pelos quais esperam, talvez, reconciliar-se mais tarde com aquilo que sabem ser a verdade, mas que não têm a coragem de proclamar. Ele não era amparado por uma moda dominante; nem sequer era amparado, propriamente dito, por uma tradição, e – o mais espantoso de tudo – ele não era sustentado por nada mais do que aquele supremo instrumento de ação, a vontade católica.

Newman disse muito bem que todos nós morremos sozinhos; de fato, isto é morrer só! Deixar-se matar, por vontade própria, pleno de vida, ao invés de pagar o preço por ceder sobre um ponto árido, restrito e intelectual; ter que aplaudir, apoiar e defender, sem entusiasmo nem a aprovação íntima.

Deixe-me colocar à sua frente esses dois pontos. São essenciais à compreensão da escala sobre a qual o mártir agiu.

Primeiro, eu digo, ele não encontrou apoio dentro de si mesmo.

Ele não tinha entusiasmo pelo Papado; ele não tinha uma tradição de defendê-lo; nenhum hábito, nenhum corpo formado de argumentos e ações em seu favor. Ele não defendia o Papado (numa época em que seus direitos estavam sendo questionados por toda parte), porque era um assunto de segunda ordem para ele. Não só, era justo o contrário.

Toda sua vida ele foi – como de fato foi todo homem de inteligência, juízo e coração, no período de transição entre a Idade Média e o Moderno – um reformador no sentido pleno dessa palavra.

Tinha sido na sua juventude o Erasmo inglês, denunciando com desprezo, como mil outros, não só os múltiplos e gritantes abusos em que a organização eclesial havia caído, mas muitas outras coisas que não são abusos de todo, mas antes devoções honestas, embora um pouco exageradas.

Seu entusiasmo, o lume de seu pensamento, suas lembranças das intensas emoções daqueles acontecimentos estavam todos em harmonia com aquela chama do zelo reformador, que pode tão facilmente ser desviada, nestes momentos, para a rebelião contra a unidade da cristandade. Sobre esse ponto particular da Supremacia Papal, ele nunca se preocupou.

Ele emergiu de uma geração profundamente abalada; seus intelectuais, desprezando o estado em que a Sé de Roma havia caído, cheios das lembranças do Cisma e dos Concílios, estavam longe de admirar a pompa temporal e, o que era pior, as receitas mecanicamente auferidas pela Corte Papal.

Se a morte de Tomás Moro tivesse sido uma morte pela Presença Real de Nosso Senhor no Sacramento do Altar, pela Santíssima Mãe de Deus, pela luz dourada que é lançada sobre a terra pelo movimento das asas da Fé, seria outra coisa bem diferente. Ele estaria engajado, e aí o homem todo estaria comprometido. Assim tem sido com grandes multidões de mártires. Mas não com ele.

Ele tinha, nesta questão da Supremacia, examinado de perto a coisa, como se fosse um entre qualquer outro problema histórico: “lendo-a”, considerou os prós e os contras. E em certo momento – um homem de leituras profundas, um excelente advogado com um cérebro afiado como uma navalha para separar uma categoria da outra – hesitou se a supremacia do Papa sobre a Cristandade era feita pelo homem ou não. Ele se inclinava a pensar que era uma coisa feita pelo homem. Após ponderar sobre tudo exaustivamente, ele chegou à sua conclusão, assim como um juiz, sem “afeição”, sem nenhum movimento particular do coração. A Supremacia de Pedro e seus sucessores (ele decidiu), era de origem divina.

Até aqui, tudo bem. Aquele ponto sendo isolado – intelectual, não moral, de forma alguma ligado ao coração, nada que pudesse inflamar um homem – ele o manteve cuidadosamente guardado e claro. Ele estava disposto a admitir a sucessão do filho de Ana; a fazer os juramentos de lealdade em qualquer grau e sobre qualquer coisa, salvo aquele ponto da Supremacia. E ele saiu correndo para defendê-la com furor? Longe disso! Ele a manteve em segundo plano; tentou não responder sobre ela; acompanhou os debates como um advogado de defesa, apontando todos os argumentos, guardando a ação.

Tudo isto é muito frio e muito frustrante. Mas ele morreu – o que é mais do que você e eu teríamos feito. E ele morreu alegremente.

Tampouco este homem extraordinário foi estimulado desde fora. Não tenho certeza de que tal apoio não seja de maior valor (embora admita que a idéia seja paradoxal) do que um sustento interior. Muitos homens e mulheres, eu imagino, foram martirizados ou sofreram algum inconveniente menos grave, depois de terem sofrido, em seus corações e mentes, graves agressões contra a Fé, mas foram consolados pela atmosfera envolvente da Cristandade. “Posso por minha própria culpa e negligência ter perdido o firme domínio sobre minha Fé, mas é meu dever apoiar outros que estão em melhor situação. Todos eles concordam. Eles me consideram como seu estandarte; e eu não cederei”. Tais mártires, imagino, terão um lugar muito elevado; pois servir à Fé por um ato de vontade é maior do que servi-la sem a interrupção por alguma fragilidade humana. Mas, em todo caso, Tomás Moro não era desse tipo. Ele não era sustentado desde fora.

Passados quatrocentos anos, esquecemo-nos hoje como o assunto era para os homens do início do século XVI. O inglês médio tinha pouca preocupação com a disputa entre a Coroa e Roma. Isso não lhe afetava a vida. A missa continuava como antes e com todo o esplendor da religião; os mosteiros ainda estavam em toda parte, não havia qualquer interrupção. A maioria dos grandes personagens – todos os bispos, exceto Fisher – se renderam. Eles não cederam com grande relutância, evidentemente. Aqui e ali havia protestos, e dois órgãos monásticos em particular haviam explodido, por assim dizer, em chamas. Mas isso foi exceção. Para o homem comum da época, qualquer um, especialmente um funcionário altamente colocado, que se colocasse contra a política do rei, seria um louco.

Devemos ter certeza disto ou então reconhecer que não entendemos a época. Reis tinham brigado com papas repetidas vezes. Em matéria de doutrina e prática Henrique era particularmente devoto e católico. Reis tinham se reconciliado com Papas repetidas vezes. Por gerações, o Rei da Inglaterra tinha na prática sido senhor absoluto de seu reino, e em noventa e nove casos de uma centena, as ações papais eram apenas uma formalidade. Seria uma péssima idéia tornar-se impopular por defender, e ao fim parecer um tolo, um ponto particular da doutrina – que, afinal de contas, poderia não ter importância alguma poucos anos depois, quando Ana Bolena deveria estar morta, talvez, mas no caso de os dois partidos, o do Rei Henrique e o de Ana Bolena, haverem se reconciliado, novamente. Esse era o ponto de vista (entre outros milhões) da esposa do Bem-aventurado Tomás Moro, e ele era muito o que se chama de um homem de família, tolerante com a insistência. Esse era também o ponto de vista de quase todos os seus amigos. E era mais difícil resistir porque eles o amavam e desejavam salvá-lo. Se eles se unissem em coro para dizer: “Este homem forte está resistindo; ah, se tivéssemos a mesma fibra!”, teria sido um apoio. Mas essa não era a atitude deles. A atitude deles era mais: “Este homem criativo e fortemente amarrado, que fez mais de uma bobagem em seu tempo, que jogou fora sua grande posição como chanceler, que em sua juventude publicou uma espécie de livro socialista, está aprontando novamente! Você nunca sabe o que ele é capaz de fazer! Realmente, ele é um bom sujeito, e alguém deveria argumentar com ele para que desista deste absurdo”!

Não, ele não teve nenhum apoio de fora.

Deixe-me terminar dizendo que ele não era apoiado pela posteridade. Há homens que podem descansar sob a tensão de uma provação na convicção de que seu sofrimento é uma semente para o futuro. Confesso a suspeita de que homens como More têm, em meu julgamento, uma visão confusa do futuro. Se a tinha, deveria saber que seu sacrifício era aparentemente em vão. Se ele pudesse retornar a esta terra hoje (e estou certo de que deve ser o menor de seus desejos!), ele não descobriria que havia semeado uma semente. Ele não encontraria – pois eu não digo que ele salvou a Fé neste país – mesmo que a Fé houvesse se conservado na vida inglesa, como um homem razoável poderia supor em 1535. Se o Beato Tomás Moro voltasse à vida neste seu próprio país, hoje ele acharia a Fé uma coisa estranha, e se enalteceria com o que eu chamei de “bode expiatório ao contrário”, um “bode expiatório para o passado”, uma exceção que deve ser louvada apenas por ter dado mais espaço para enaltecer os espíritos vis que serviam à corte. Em tudo isso ele sorriria, sendo um homem de humor; ou mais provavelmente, sorriria agora. Em todo caso, ele não pôde contar com o apoio da posteridade.

Se algum dia um homem morreu sozinho, ele morreu sozinho.

E a moral é clara. É nosso dever desistir de tudo por tudo o que é verdade, quer nos agrade ou não; quer tenhamos outros conosco ou não; quer o nosso humor concorde ou repulse. A inteligência é absoluta em sua própria esfera. A inteligência nos manda aceitar a verdade, e para a verdade o homem deve dar a sua vida.

Que todos aqueles, portanto, que ao definir a verdade, ainda que seja apenas num canto e em relação a uma coisa seca, que a eles pareça morta, invoquem o patrocínio desse mesmo cidadão inglês. Sua diversão, sua coragem, sua erudição lhes será vantajosa, assim como sua santidade – se em breve eu puder falar de tal qualidade.

Hilaire Belloc, em “One Thing and Another: A Miscellany from His Uncollected Essays”, selecionados por Patrick Cahill, Edição de 1955. Foto: Belloc discursa na Brighton Gallery em 1935.

Pobre tradução, esta – mas tinha que ser tentada. Pela memória de Carlos Manuel, em quem todos vimos resplandecer a vontade de viver e defender a Fé. ICXC NIKA.

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