G. K. Chesterton * 1874 / + 1936
Traduzido do inglês por Márcia Xavier de Brito
É um tanto curioso que as palavras como herói e heroína tenham perdido o sentido pelo uso constante relacionado à ficção literária. Um herói, agora, significa simplesmente um jovem bastante decente e confiável para passar por algumas aventuras sem se deixar enforcar ou sair para beber. O romancista realista moderno nos apresenta a um cavalheiro suburbano fracote que alterna a respeitabilidade maçante com o vício enfadonho e passa três grossos volumes antes de decidir com quem irá casar. E por uma estranha perversão blasfema das palavras é chamado de “O herói”. Poderia igualmente, com razão, ser chamado “O santo”, “O profeta ” ou “O messias”. Um herói significa um homem de estatura heróica, um semideus, um homem em quem pesa algo do mistério que escapa ao alcance do homem. Ora, o que há de grandioso e surpreendente em heroínas como Pórcia em “O Mercador de Veneza”, Isabela em “Medida por Medida” e Rosalinda em “Como Gostais” é que são heroínas, que representam certa dignidade, certa liberalidade, distintas do mero vigor simples dos homens shakespeareanos. Não podeis dar palmadas em Pórcia como Bassânio. Pode ser ou não uma divindade aquilo que protege o rei, mas certamente é uma divindade que protege a rainha. Para compreender a qualidade heróica nas mulheres shakespeareanas é necessário dominar um pouco toda a visão elizabetana, em especial, toda a visão shakespeareana sobre o assunto.
A grande noção por detrás das religiões mais antigas do mundo é, certamente, a ideia de que o homem possui origem divina, de que é um herdeiro sagrado e esplêndido, o filho mais velho do universo. Mas a humanidade não pôde, na prática, concretizar essa noção de que todos eram divinos. A imaginação prática rechaça a ideia de dois deuses enganando um ao outro por uma medida de queijo. A razão se recusa a aceitar a ideia de sessenta corpos, cada um deles repleto de uma divindade resplandecente, acotovelando-se para entrar em um ônibus. Essas meras dificuldades externas fazem com que homens de todas as épocas recorram à concepção de que determinados homens salvaguardaram a santidade humana para os demais homens. Certas personagens foram mais divinas porque foram mais humanas. Nas eras primitivas do folclore e em alguns períodos feudais, esse homem mais completo era o herói conquistador, o homem forte que matava dragões e opressores. Para os antigos hebreus tal ser sagrado era o profeta; para os homens das eras cristãs era o santo. Para os elizabetanos esse ser sagrado era a mulher casta.
A concepção heróica da feminilidade surge de maneira mais clara em William Shakespeare (1564-1616) por causa da surpreendente imaginação psicológica desse autor, mas também existe como ideal em todos os elizabetanos. E o motivo exato das heroínas de Shakespeare serem tão esplêndidas é porque estão isoladas de todas as outras personagens como personificações de primitivas épocas de fé. São os picos altos e nevados que captam os últimos raios da crença na presente divindade do homem. Sentimos, ao ler as peças, que as mulheres são mais abrangentes, mais simbólicas, pertencem mais ao ideal e menos à literatura realista. São o exato oposto das abstrações; consideradas simplesmente como mulheres são rematadas nos menores detalhes. Novamente, há algo mais nelas que não existe nos homens. Pórcia é uma boa mulher e Bassânio é um bom homem. Mas Pórcia é mais que uma mulher: Pórcia é mulher e Bassânio não é homem. É simplesmente um sujeito muito agradável e respeitável.
Existem peças elizabetanas tão sombrias e assustadoras que são lidas como o rebotalho da cesta de lixo de um hospício. Ninguém salvo o profeta possuído por demônios, podemos crer, poderia produzir incidentes tão bruscos e tão sombrios, evocando cenas tão vívidas e ininteligíveis. Numa das peças um homem é forçado a assistir o assassinato da amada e não pode falar porque sua língua fora pregada no chão com uma adaga. Outro homem é despedaçado com pinças em brasa; noutra um homem é lançado em um caldeirão por um buraco no assoalho. Com gritos horríveis do mais baixo dos infernos proclama-se que o homem não pode ser continente, que o homem não pode ser verdadeiro, que é apenas o mais imundo e mais engraçado dos macacos. E ainda assim, a crença única que todos esses homens brutais e sombrios admitem é a crença na mulher casta. Nessa única virtude, nesse único sexo, algo heroico e sagrado, algo, no sentido mais excelso da palavra, fabuloso, estava presente. O homem era natural, mas a mulher era sobrenatural.
Agora está bem claro que esta era a visão elizabetana da mulher. Pórcia não é somente a mais esplêndida e magnânima mulher da literatura. Não é apenas a heroína de uma peça, ela é a peça. É o ideal heroico absoluto sobre o qual a peça é construída. Shakespeare concebera, com extraordinária força, humor e comiseração, um homem para expressar o ideal da justiça técnica, da moralidade formal e da reivindicação dos próprios direitos: tal homem era Shylock. Em oposição a ele criou uma personagem que representava uma concepção mais abrangente de generosidade e persuasão, a justiça que é um amálgama da dívida de paixões geniais, do compromisso que nasce da centenas de valorosos entusiasmos. Pórcia tinha de representar o ideal de magnanimidade na lei, na moralidade, nas artes e na política. E Shakespeare criou tal personagem como uma boa mulher porque, para a mentalidade da época, fazê-la uma boa mulher era coroá-la com um halo e armá-la com uma espada.
O presente ensaio foi publicado originalmente na edição de 26 de outubro de 1901 do periódico “The Speaker”. O texto foi traduzido apartir da seguinte edição: CHESTERTON, G. K. “The Heroines of Shakespeare”. In: “A Handful of Authors: Essays on Books & Writers”. (Edited by Dorothy Collins). New York: Sheed and Ward, 1953. pp. 72-74.
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