Por Roberto Mattoso Camara Filho
Publicado na revista Católica A Ordem*, vol. LIX, n. 2, 1958.
“O Homem que foi Quinta-feira” [1908] é um livro do qual se pode dizer que apresenta todas as facetas do espírito de Chesterton. Todas as variadas formas de engenho do escritor inglês estão aqui harmonizadas num feliz compósito. O pensador, que pensou o mundo todo com uma segurança de bom senso raras vezes igualada, o romancista que engendra histórias deliciosamente surpreendentes, o fantasista que recria mais belamente o nosso mundo em narrativas feéricas [1], o artista que nos faz contemplar os homens e a natureza numa atmosfera de beleza.
“O Homem que foi Quinta-Feira” é um romance policial em seu entrecho. Chesterton tinha um extraordinário talento para o romance policial, e criou, mesmo um imortal e inigualável estilo de romance policial, o romance policial com temática de intenções filosóficas.
Penso que este estilo jamais será igualado porque ele resultou de um peculiaríssimo engendro de escritor. Em primeiro lugar, Chesterton foi um artista, um poeta, um romancista. Em segundo lugar, ele foi um pensador, e dos grandes. Isto significa, em linguagem mais técnica, que ele tinha um engenho de escritor que pode representar o mundo pela criação artística afeita ao manejo dos singulares inconceptualizáveis (no caso do romance, isto corresponde à criação dos caracteres entretecendo uma história) ao mesmo tempo que pode abranger o mundo pela conceptualização do geral. E a combinação deste dois engenhos em um só engenho, em Chesterton, não se faz por simples adição, mas sim por interpenetração, de modo que a postura do artista nos surpreende por ser a de um filósofo, e a do filósofo por ser a de um artista. De forma que os romances do romancista Chesterton não se constituem apenas em tribuna para o pensafor Chesterton, mas são extraordinariamente romances, entrechos pujantes de fantasia, da mais poética fantasia, em sujas entrelinhas brilha então como linha condutora a luz que nelas põe o pensador.
O romance é o gênero literário que mais veste pode mudar. Penso mesmo que isto constitui uma grandeza, uma glória do gênero. O essencial num romance é que ele seja romance, quer dizer, não submerja em outro gênero. Não seja transfigurado num ensaio, por exemplo, como é tão comum modernamente. Lendo um livro como este de Chesterton, sentimos que estamos diante de um romance que autentica o gênero. Quero chegar a outro ponto. Ao ler um romance como “Tess d’Urberville”, como fiz quase ao mesmo tempo em que lia “O Homem que foi Quinta-Feira”, senti que tomava o pulso a um grande romance; as pulsações eram sem dúvidas as do gênero romance. Li também quase ao mesmo tempo “Etzel Andergast” do grande e surpreendente romancista (verdadeiramente surpreendente por seus contrastes) Jacob Wassermann, e senti navegar nas águas caudalosas de uma criação de romance, de difícil e gigantesco romance-rio. E nestas leituras quase paralelas, fruto do mero acaso, o cotejo bateu às portas de minha felicidade crítica, e exigiu seu exercício. Impôs-se a conclusão de uma certa superioridade do escritor Chesterton sobre os dois outros, ressaltou vivamente sua maior perfeição pela posse de um dom só a ele concedido: impregnar o tecido de sua criação imaginativa do tônus de vigoroso pensamento. Wasserman e Thomas Hardy são dois grandes criadores de romance, dizia-me a retina da inteligência sensibilizada pela leitura fresca ainda. Mas não se lhes encontram no curso da narrativa, nas inflexões mestras da história contada, aquelas reflexões com que a sabedoria de Chesterton sempre imanta o trecho da mais esfuziante fantasia. O leitor me entenda: em Thomas Hardy havia romance, vigoroso romance, em Wassermann havia romance, caudaloso romance, mas em Chesterton havia não só romance, como ainda pensamento, colossal pensamento, a abranger com seus braços a imensidão da vida. Uns representavam a vida, o outro representava-a e abrangia inteira em seu abraço de compreensão amorosa.
Feita já a comparação, vem-me à idéia que este é um livro de Chesterton que realmente se prestava a um confronto com os dois grandes romances que citei. Isto porque é um livro que condensou de forma única todos os raios do espírito do grande escritor inglês. De fato, outros escritos seus primarão por um ou outro destes raios, em maior ou menor intensidade. Este, porém, é um dos momentos mais felizes de expressão das diversas faculdades cumuladas na cabeça de Chesterton atuando harmonicamente.
“O Homem que foi Quinta-feira” tem um entrecho de romance policial e de romance fantasista. Começamos enleando numa trama que aguça nervosamente a curiosidade e logo passamos à sensação deleitosa da contemplação dos acontecimentos que se desdobram no reino da féerie.
Até a fuga dos cinco policiais, que aparecem inicialmente como componentes de um conselho anarquista e vão-se revelando integrantes da polícia, uma polícia sui generis, que é terríveis criminosos anarquistas, inimigos da sociedade por um ódio metafísico a ela, até esse ponto, o romance desliza na pauta do policial. Depois, a história se transpõe para um plano da mais livre fantasia, de curiosidade féerie. Chesterton tinha uma profunda admiração pelas histórias de fadas e uma dificilmente igualável compreensão de seu teor da realidade. Essa sua intimidade com o féerico inspira sua pena a derivar o remate de seus entrechos para o reino da plena fantasia. Em “A volta de D. Quixote”, em “A taberna voadora”, e neste “O Homem que foi Quinta-feira”, no epílogo, somos transportados pelo tapete mágico da fantasia chestertoniana. Aqui perseguimos, com seus dos componentes do conselho universal dos anarquistas, o sétimo integrante deste, seu presidente, o terrivelmente genial Domingo, que foge em desabalada carreira montado num elefante, através dos entrecruzamentos do tráfego da cidade. Vai assim até embarcar num balão que se achava amarrado em uma exposição. E prosseguimos na perseguição ao super-humano Domingo, nós através de campinas verdejantes, e o flutuante do balão desce, e os seis desarvorados policiais são procurados por um emissário de Domingo para uma visita aos seus domínios surpreendentemente belos. Lá, trajando vestes suntuosas imaginadas para o caráter de cada um pelo genial Domingo, assistem a um baile de carnaval até que este chegue. Como se vê, já transpusemos os limites realidade-real, e estamos imersos na realidade-fantasia. Aqui –observe-se- o brilho daquelas facetas do engenho chestertoniano a que me referi ofusca-nos pela descarga incessante de seus raios intimamente fundidos. A frase, o período, são instrumentos a um só tempo do pensador, do romancista e do fantasista. O estilo anima, o verbo rutila, e o artista nos arrebata.
Quando chegamos a esta parte do romance, abre-se uma nova perspectiva sobre o que já lemos, e sobre todo romance. É como ums nova visão, surpreendente, encantadora, desconcertantemente deliciosa. Tomamos consciência neste momento do fantástico de toda a história. Aquela verossimilhança intricada, do enredo policial, revela-nos num átimo, o fantástico que lhe impregna o contexto. Surpreende-nos a revelação, abala-se deliciosamente nosso ritmo interior de leitura. Chesterton muda o compasso da dança, introduz-lhe uma nova dimensão; nosso olhar se cola hipnotizado aos movimentos fantasiosos deste bailado. Até a última linha do livro, a hipnose se mantém.
Penso que a arquitetura deste romance nos pode revelar algo sobre a natureza do paradoxo chestertoniano. Imaginação e pensamento estruturam o romance. Imaginação e pensamento estruturam também o paradoxo. Seu paradoxo é um pensamento robusto, surpreendente por sua verdade profunda, desconcertante por sua crueza de revelação, encarnando numa forma artística fantasiosa.
Neste romance, aprendemos, através de peripécias de policiais e anarquistas, esta verdade às vezes desconhecida porque profundamente entranhada na vida, de que a beleza e a poesia estão na ordem, na lei, e em suas jornadas sofridas e aventurosas, do que na anarquia. Quando o único verdadeiro anarquista de toda a história aparece amaldiçoando os homens os homens da lei por “sua segurança”, por “se sentarem em cadeiras de pedras e nunca descerem delas”, por não terem sofrido “uma hora de agonia real”, responde-lhe Sime “Quinta-feira” que, muito ao contrário, eles foram derrotados, “foram esmagados”, “desceram dos tronos”, “desceram até aos infernos”. E justamente um dos melhores momentos do romance é aquele em que os policiais se vêem derrotados pelos anarquistas, terrivelmente esmagados, esperando um fim tanto mais horrível pelo absurdo que o condiciona (uma população pacata parece tornar-se anarquista). Experimentam então instantes de agonia, dessa agonia que é um sinal de vida vivida. Desse estado, porém, vão caminhar para uma maior plenitude existencial: vão reencontrar a tranqüilidade da ordem. Na trajetória da agonia para a serenidade se conhece uma intensa vivência, entretanto, se conhece ao alcançar a meta, e é uma profunda vivência poética, porque “a boa marcha das coisas” é “a mais poética do que as flores, mais poéticas do que as estrelas”.
[1] Poder das fadas, bruxaria; espetáculo esplêndido e maravilhoso, encantamento; peça de teatro ou espetáculo em que aparecem personagens sobrenaturais (fadas, mágicos, feiticeiros) e que exige meios cênicos consideráveis.
*A Ordem (1921) foi uma das mais influentes revistas católicas do Brasil. Meio de irradiação do pensamento do Centro Dom Vital (1922) a revista a Ordem influenciou a formação de gerações de intelectuais católicos. O Centro Dom Vital foi um dos polos mais fecundos da intelectualidade dos leigos católicos no Brasil. Dentre alguns gigantes que fizeram fileira no Centro podemos destacar: Jackson de Figueiredo (fundador da Revista e um dos fundadores do Centro Dom Vital); Alceu Amoroso de Lima; Gustavo Corção, entre outros…
excelente grande pensador