Por Dale Ahlquist
Presidente da American Chesterton Society
Título original: Lecture 85: Chesterton on Shakespeare, http://www.chesterton.org/lecture-85/
Tradução: Leonardo Lopes
Com essa coleção de ensaios sobre Shakespeare [1], temos um lampejo do que seria, por assim dizer, o maior livro de G. K. Chesterton, livro que infelizmente ele nunca escreveu. Ele foi encarregado de escrever um livro sobre Shakespeare, mas morreu antes que a primeira pagina fosse escrita. Contudo, ele já tinha escrito muito sobre o assunto e uns trinta e cinco anos mais tarde, sua secretária, Dorothy Collins, reuniu muitos de seus ensaios sobre o Bardo, boa parte deles já havia aparecido em outras coleções. Deus abençoe Dorothy Collins, mas é quase impossível entrar em contato com esse volume maravilhoso por que a herdeira do testamento de Chesterton estava se tornando um pouco excêntrica em seus últimos anos. Ela tomou a decisão de ter o livro publicado por Lord Darwen, um nobre da região que não conhecia nada sobre publicação. Ele imprimiu, talvez, um milhão de cópias, mas não fez nenhuma publicidade e disse aos potenciais críticos que eles teriam que comprar o livro a preço integral se quisessem escrever sobre ele, e assim, poderiam adquirir algum credito por um dos maiores segredos do mundo editorial. Pelos idos de 1970 Chesterton estava em um eclipse quase total. E o que aconteceu não ajudou a mudar essa situação.
Poderíamos afirmar que Chesterton é menos um critico de Shakespeare do que é um critico dos críticos de Shakespeare. Ele é um critico daqueles que poderiam psicanalisar não apenas Shakespeare, mas também os personagens dele, daqueles que tentariam forçar e apertar Shakespeare para fazê-lo caber em filosofias modernas estreitas, daqueles que concluíam que Shakespeare era desesperador, apenas por que eles descobriram que Shakespeare expressava o próprio desespero deles, daqueles que poderiam tornar “boa poesia em má metafísica”, daqueles que não podiam interagir com o público e assim não entendiam por que Shakespeare interagia com ele e por que depois de passado quatro séculos ele ainda o atraia, e daqueles que tinham a audácia de dizer como eles teriam escrito Shakespeare, quando foi Shakespeare que nos escreveu. E daqueles que dizem que Shakespeare foi outra pessoa.
Chesterton declara com muita naturalidade que Shakespeare era católico. Quando chamado para defender o comentário, escreve: “Shakespeare é possuído de uma ponta a outra pelo sentimento que é a primeira e mais fina idéia do Catolicismo: que a verdade existe quer gostemos quer não, e que nos compete acomodarmo-nos a ela.” Milton, por outro lado, escreve para “justificar os caminhos de Deus para o homem… A religião de Milton era a religião de Milton, mas a religião de Shakespeare não era de Shakespeare.”
Muitos dos ensaios nessa coleção se relacionam à Hamlet, que, “como a Igreja Católica, acredita na razão.” Que é capaz de louvar a criação de Deus (“Que obra de arte é o Homem!”)[2] mesmo quando ele está sem vontade de fazê-lo. Que possui uma consciência Católica, e não, como diria Freud, um complexo.
Tão grande quanto a peça Hamlet, Chesterton afirma que Macbeth é, de fato, o maior drama e a maior tragédia de Shakespeare. Assim como Hamlet é acusado de ser um cético e um pessimista baseado em passagens citadas muitas vezes, Shakespeare é acusado de ser pessimista por causa de Macbeth. Um desses acusadores era George Bernard Shaw. E a passagem usada por Shaw para provar o pessimismo de Shakespeare, o solilóquio do “fora, vela fugaz”, com a famosa citação “a vida não é mais do que uma sombra,”[3] e assim por diante.
Como Chesterton explica à Shaw, a importância desse discurso está em seu valor dramático, não em seu valor filosófico. É Macbeth em seu ponto mais baixo, pouco antes de sua derrota. “É um discurso,” diz Chesterton, “feito por uma alma perversa e gasta confrontada pelo seu próprio fracasso colossal.” Não é, de forma alguma, um posicionamento metafísico; é uma explosão emocional. Chamar Shakespeare de pessimista por ter escrito as palavras “fora, fora, vela fugaz” é o mesmo que chama-lo de campeão do ideal do celibato por ter escrito as palavras, “rápido com ela para um convento.”[4] “Não é uma falha de Shakespeare,” diz Chesterton, “que, tendo escrito algo pessimista tendo em vista um ponto teatral, aconteceu de escrever um pessimismo melhor do que o fizeram aquelas pessoas que são tolas o bastante para serem pessimistas.”
Chesterton diz que Macbeth é a Tragédia Cristã por excelência. Ao contrario de Édipo, que é a Tragédia Pagã suprema: “O ponto principal acerca de Édipo é que ele não sabe o que está fazendo. O ponto principal acerca de Macbeth é que ele sabe o que está fazendo. Esta não é uma tragédia do Destino, mas uma tragédia do Livre-arbítrio”.
Contudo, ainda que Chesterton sustente que Macbeth é o maior drama de Shakespeare, ele não diz que é sua maior peça. Esta honra cabe a peça Um Sonho de Uma Noite de Verão [5]. “É o misticismo da felicidade… Em pura poesia e a intoxicação de palavras, Shakespeare nunca subiu tão alto quanto ele subiu nessa peça.”
É interessante notar você pode ter personagens cômicos em uma tragédia, mas não funciona ter personagens trágicos em uma comédia. Você pode ter o coveiro em Hamlet, mesmo que Hamlet não goste dele alegremente emprenhado enquanto está cavando um túmulo. Chesterton diz que “O homem comum, embrenhado em sua ocupação trágica, sempre se recusou e sempre se recusará, a ser trágico”. Mas você não pode ter uma Ofélia em Um Sonho de Uma Noite de Verão. Pois isto arruinaria toda a atmosfera. E é precisamente essa atmosfera que é tão mágica e quimérica. Todos os eventos em Um Sonho de Uma Noite de Verão poderiam ser considerados trágicos e cruéis, mas ainda eles seriam hilários. E o personagem mais hilário de todos é Bottom [6], que é a encarnação da Felicidade Inglesa. Chesterton diz que Bottom “é maior e mais misterioso que Hamlet.” Ele é “tão firme quanto uma árvore e tão único quanto um rinoceronte, e poderia muito facilmente ser tão estúpido quanto qualquer um deles.” A presença dele preenche o quarto como um fogo crepitante e sua ausência deixa um vazio inexplicável.
Finalmente, há um outro critico do qual Chesterton prescindi: o estudioso de mente pequena que consegue sorrir desdenhosamente quanto a Shakespeare ter tomado emprestado todos os seus enredos. Se Shakespeare os tomou emprestados, diz Chesterton, ele alegremente os devolveu muito bem.
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NOTAS
[1] Referência ao livro que é assunto do texto: The Soul of the Wit: G. K. Chesterton on Shakespeare. Dover Publications, 2012. Publicado pela primeira vez em 1972.
[2] Hamlet, Ato II, Cena II.
[3] Macbeth, Ato V, Cena V.
[4] Hamlet, Ato III, Cena I.
[5] Peça traduzida muitas vezes como “O Sonho de Uma Noite de Verão” (Cunha Medeiros e Oscar Mendes) ou apenas como “Sonho de Uma Noite de Verão” (Barbara Heliodora).
[6] Bottom é um tecelão que aparece pela primeira vez na peça já no primeiro Ato, na segunda cena. Uma observação referente à tradução de nomes próprios faz-se necessária: “bottom” é uma palavra inglesa equivalente em Português à “fundo”, “chão” “rolo” etc. Cunha Medeiros e Oscar Mendes, por exemplo, optaram por traduzir “Bottom” por “Nick Novelo”; já Barbara Heliodora traduziu “Bottom” por “Bubina”.