Por Rosa Clara Elena
Foi uma figura solitária e originalíssima das letras universais. A sua vastíssima obra transformou-se num autêntico front que compensaria não pouco uma arte e uma filosofia corroídas pelo mal, pelo erro e pela feiura. Chesterton passeou com sua capa e sua imensa humanidade pelas ruas, pelos salões, pelas tabernas e pelas salas de aula não só da Inglaterra mas de muitos outros lugares do mundo para plantar a semente do catolicismo, ensinando a pensar com senso comum e com humor. Poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, filósofo, desenhista, conferencista, foi o mais completo e brilhante apologista do catolicismo em um século que elaborou sistematicamente um discurso demolidor contra a Igreja e a fé católicas.
Gilbert Keith Chesterton nasceu em 29 de maio de 1874 em Kensington (Londres). Era o segundo dos três filhos de Edward Chesterton e Marie Louise Grosjean. Conquanto batizado e formado segundo a religião anglicana, desde muito pequeno Chesterton demonstrou admiração pelo catolicismo, especialmente pela pessoa da Santíssima Virgem. Como confessava anos depois: “Mal consigo recordar um tempo em que a imagem de Nossa Senhora não se erga muito concretamente no meu espírito […]. Quando recordava a Igreja Católica, recordava-a a Ela; quando tentava esquecer a Igreja Católica, tentava esquecê-la a Ela”.
Chesterton ficaria profundamente marcado pela qualidade da sua infância, enriquecida pelo talento artístico de seu pai, um apaixonado do Medievo e da cultura gótica, que se dedicou a formar os filhos com invenções suas de todo o tipo: teatros de marionete, pinturas medievais, estampas antigas etc. Toda a obra de Chesterton está embebida daquela sã imaginação, da delicadeza e da sensibilidade do seu lar; tanto que voltaria repetidas vezes ao longo da vida “ao guinhol da infância”, especialmente a um de motivo medieval, cujas figuras, feitas também por seu pai, representaram simbolicamente os princípios e os nobres sentimentos que defenderia depois: assim, no palco infantil coexistiam um Castelo, uma Dama, um Inimigo e um Herói; alegoria também de uma batalha espiritual em que Chesterton entrou ainda muito jovem. Ademais, é notável em Chesterton a atitude sempre presente em sua vida, como naquele teatro, do humilde “segundo plano”, de espectador, num estado de “espanto perpétuo” diante do universo, espanto que lhe permitiria chegar à Verdade.
A harmonia e originalidade de seus pais foram também terreno propício para o menino que anos depois seria um lúcido defensor da família, com aquela maneira tão sua de mergulhar nos tesouros imensos e no verdadeiro colorido do lar. (Assim o faria em obras como O Que Está Mal no Mundo, A Superstição do Divórcio, Hereges, O Homem que Sabia Viver, Brave New Family).
Depois de fazer os seus estudos secundários no St Paul’s School de Hammersmith (aí ganharia um prêmio literário prestigioso com um poema sobre São Francisco Xavier), Chesterton ingressa numa escola de arte, a Slade School de Londres (1893), onde começa a carreira de pintura; carreira que ele deixa inconclusa para dedicar-se totalmente ao jornalismo e à literatura. Mas toda a sua obra está repleta da plasticidade do pintor, e por todas as suas páginas encontramos as pinceladas de imponentes descrições, de um homem admirado pelo mosaico do universo e suas cores. Por estes anos Chesterton é um jovem magro, pensativo, lento nas suas maneiras, mas de uma velocidade mental inesperada. Assim o demonstraria nas típicas sociedades e clubes ingleses que começa a frequentar nos alvores do Novecentos, onde já se afazia notar pelas ideias diametralmente opostas às que predominavam então. E Chesterton será desses poucos escritores cristãos que impuseram um verdadeiro respeito intelectual, porque seu catolicismo – então em gestação -, sua capacidade para discutir as filosofias imperantes (pessimismo, niilismo, materialismo, darwinismo…) vinham cheios de um talento poético e de uma inteligência que perturbavam sempre o seu auditório e os seus leitores. Vinha diretamente, ademais, contra todo o relativismo de pensamento. Recorda, por exemplo, um diálogo muito representativo daqueles centros de arte: “Uma espécie de teósofo me disse: ‘O bem e o mal, a verdade e a mentira, a loucura e a cordura são só aspectos do mesmo movimento ascendente do Universo.’ Já nessa época me ocorreu perguntar: ‘Supondo que não haja diferença entre o bem e o mal, ou entre a verdade e a mentira, qual é a diferença entre ascendente e descendente?’.”
Matrimônio e primeiras obras
Em um famoso bairro de intelectuais – Bedford Park -, em 1896, Chesterton enamora-se de Frances Blogg, a mulher que pouco depois se tornaria sua esposa e que estimulou admiravelmente o caudal artístico do marido. Era uma mulher tão discreta como brilhante, e inspirou a Chesterton belos textos sobre o amor e o matrimônio, cheios de verdadeira delicadeza. Anglicana também, foi Frances, não obstante, quem fez Chesterton estudar seriamente o cristianismo, além de ter contribuído com isso para a sua conversão (conversão que levaram a termo ambos, ainda que em momentos diversos).
A primeira obra de Chesterton é um grupo de poemas e ilustrações, com o título de Greybeards at Play, publicada em 1900, onde já se revelaria o seu humor tonificante e o seu desejo permanente de transmitir o gozo pela realidade gratuita da vida. O seu segundo livro, O Cavaleiro Indómito e outros poemas (1901), mais profundo e incisivo, chamou a atenção da crítica. Aí publicava um dos seus mais famosos poemas: “À Criança Que Não Nasceu”.
A carreira de Chesterton se compreende bem se se considera que toda a sua vida se dedicou a contestar o pessimismo ateu e quantas teorias se dedicaram a olhar com frieza a existência. Pode-se dizer que o eixo de sua obra é “esmagar” ou “golpear”, como ele mesmo dizia, contra o esquecimento de Deus. Mediante as suas primeiras obras, diz-nos, “queria expressar, conquanto não soubesse fazê-lo, que nenhum homem sabe quão otimista é, ainda chamando-se pessimista, porque não mediu realmente a gratidão da sua dívida para com Aquele que o criou e lhe permitiu ser algo. No fundo do nosso pensamento, existia uma labareda ou estalido de surpresa ante a nossa própria existência. O objeto da vida artística e espiritual era trazer para a superfície esta submersa aurora maravilhosa”.
Certamente não é este o espírito da arte moderna, e por isso podemos falar de uma solidão em Chesterton, solidão que ganha mérito porque ninguém, como ele então, se encarregou de “trazer uma aurora maravilhosa”, mas sim, ao contrário, de elaborar deformações, pesadelos ou abstrações incompreensíveis da realidade.
A pena diferente e ardente de Chesterton suscita imediatamente grande admiração. Desde que começou a escrever no famoso Daily News, o jornal teve a tiragem dobrada. Entre 1903 e 1908, escreve várias obras de enorme qualidade: a biografia de um poeta vitoriano, Robert Browing (1903); um ensaio que provocou grande polêmica: Hereges (1905), onde Chesterton “contende amistosamente”, mas sempre implacável, com Bernard Shaw, Nietzsche, H. G. Wells, entre outros muitos pensadores e filosofias que sustentavam teses contrárias à fé. Em 1906 publica uma joia da literatura inglesa: Vida de Dickens, uma das mais finas e profundas interpretações do célebre escritor (muitos anos depois escreveria outra brilhante biografia literária, Robert Louis Stevenson).
Em 1908 aparece o romance mais famoso de Chesterton: O Homem Que Foi Quinta-feira, romance que tem a virtude de combinar com genialidade a aventura e a filosofia. Chesterton denuncia aí, em diálogos antológicos, o dano imenso que pode acarretar uma arte, especialmente literária, contaminada de má filosofia, de má filosofia – em muitos casos – talentosamente apresentada.
Ortodoxia
Somente em duas semanas, e quase ao mesmo tempo que O Homem Que Foi Quinta-feira, Chesterton escrevia uma obra crucial na sua carreira; com ela muitos se converteram ao catolicismo: Ortodoxia. Essa obra surgia pelo “desafio” que lhe havia feito um crítico quando da publicação de Hereges, recriminando-lhe que era muito fácil isso de discutir todas as filosofias e todos os autores sem definir clara e terminantemente a própria. Chesterton não se fez rogar: traçou uma incrível autobiografia de uma alma que procurou e achou a Verdade pelos caminhos mais inesperados: “se a alguém interessa [diz nas primeiras páginas] saber como as flores do campo ou as palavras lidas num ônibus, os acidentes da política ou os fragores da juventude confluíram em mim, sob determinada lei, para produzir uma convicção de ortodoxia cristã, esse, confio eu, lerá com agrado estas páginas”. E talvez o mais espantoso de Ortodoxia seja a enorme riqueza de dados e fatos díspares que Chesterton reúne e analisa, ao mesmo tempo com profundíssima lucidez e profundidade afetiva, até dar com o catolicismo. O seu método é certamente inusual, porque – diz-nos – assim como um homem, para defender a supremacia da civilização sobre a barbárie, poderia começar por qualquer “ponta” ou circunstância – “tenho geladeira”, “há policiais” -, dado que em si mesma a civilização integra coisas evidentes e razoáveis, do mesmo modo o catolicismo explica tão completamente os fatos da vida humana que, diz, “para defendê-lo, tanto faz começar por uma cabaça ou por um táxi”.
Chesterton estuda diversas filosofias da história: materialismo, subjetivismo, determinismo, panteísmo… nenhuma explica aceitavelmente o relevo e a complexidade da existência. E dirá Chesterton que os que o “empurraram” cada vez mais para a Igreja foram precisamente aqueles agnósticos que lhe suscitaram “dúvidas mais profundas que as suas”. Um dos fatos que analisa é a quantidade de acusações contraditórias que recebeu a Igreja: ou era demasiado pomposa ou demasiado austera, aterrorizadora ou prometedora de uma felicidade sem fim; obstinava-se em que as pessoas deviam ter muitos filhos ou não devia tê-Ios em absoluto: fecundidade e celibato. Só o pecado original, conclui Chesterton, explica o porquê de uma proposição complexa, só o catecismo satisfaz essa mesma complexidade da alma humana; só a aceitação de grandes mistérios, e não o desgaste racional por compreender tudo, nos coloca na realidade: “o cristianismo planta a semente do dogma na mais pura sombra, e por isso lhe é dado crescer”. Somente a ortodoxia católica fez feliz ao homem: “é como os muros postos ao redor de um precipício onde pode brincar uma porção de crianças”. Só a cruz na sua interseção contraditória de linhas é livre, estende os seus quatro braços para o infinito, enquanto o círculo – símbolo das religiões orientais – está escravizado na sua única linha, a serpente que morde a própria cauda. Somente o cristianismo com o mistério “escandaloso da cruz” propõe uma solução cordata e verdadeira. Chesterton ensina-nos, pois, a desconfiar das explicações aparentemente “coerentes”, lineares, que deixam um monte de fatos sem explicar.
O dom da existência, as maravilhas do universo são as primeiras punções diante de que Chesterton descobre Deus; mergulha no sentimento de surpresa e gratidão que lhe produz cada coisa: “no espanto há um elemento positivo de prece”; mergulha também no afeto que experimentava ante os obséquios de Deus: “senti-me perdidamente enamorado do universo”, enquanto o filósofo moderno o estudava para metê-lo na cabeça, mas sem enamorar-se dele, sem medir um instante o seu valor real. Este valor – com mais razão depois da Redenção – é nobremente descrito através de uma comparação: assim como Robinson Crusoé na sua ilha entesoura pequenos utensílios, especialmente porque foram resgatados de um naufrágio, o homem deveria pensar que não só podia “não ter sido” mas também que “tornou a ser”, foi salvo de um grande naufrágio; daí que todas as coisas devam apreciar-se duplamente, como Crusoé aprecia os seus despojos.
O homem que sabia viver
Dizia o notável escritor francês, Paul Claudel, que Chesterton teve a missão de “refazer uma imaginação e sensibilidade católicas, murchas há quatro séculos”. E outro grande escritor, o Padre Leonardo Castellani, dizia que esta missão chestertoniana consistiu em “rir, fantasiar, disputar, atirar-se no pasto e andar de pernas para o ar, cantar as verdades mais gordas à tesa Inglaterra, denegrir copiosamente os políticos, banqueiros, cientistas e literatos, escarnecer os inimigos e crer na Igreja Católica Romana; mas a graça está em que isto último é o que dá poder ao primeiro”. A graça é também que Chesterton cultivou a imaginação fundado no catecismo e ao serviço dele.
Há, como diz Castellani, uma atitude em Chesterton – eminentemente católica – que desconcertou sempre os seus contemporâneos: o júbilo. Mas como o seu era um júbilo que estava junto a uma inteligência colossal, Chesterton encarregou-se de extirpar consideravelmente o preconceito entre cientistas e intelectuais que une a fé à estreiteza mental e a fé à tristeza. Neste sentido, o tema de um de seus melhores romances, O Homem Que Sabia Viver (1912), é uma reprovação “jocosa” ao mundo moderno pela sua profunda tristeza, pela sua assombrosa falta de diversões autênticas e simples, pela sua frieza, pela sua tremenda indiferença para com as coisas essenciais e para com o espetáculo tão rico da criação, pela sua incapacidade para enamorar-se de nada; uma reprovação muito profunda a toda a “mitologia e jargão científico” (leia-se evolucionismo e a ciência que se jacta de prescindir de Deus), que no fundo é estéril e aborrecida, tão profusa como sonífera. Por isto, dirá Chesterton – uma verdade gorda à “tesa filosofia” – que o verdadeiro problema prático que a filosofia deve resolver é ensinar a gozar das coisas, e, o mais difícil, saber conservar este gozo. É também esta obra – em grande medida, autobiográfica – um convite vigoroso ao matrimônio, ao amor verdadeiro entre homem e mulher, à conservação do seu encanto, à conquista perene, à delicadeza e à hombridade. Nunca se insistirá suficientemente naqueles traços inequívocos que atravessam a obra e a vida de Chesterton: uma profunda delicadeza e cavalheirismo; delicadeza, certamente, para com a mulher, mas que se estende a todas as coisas.
A conversão ao catolicismo
Chesterton confessava na Autobiografia que um pequeno “catecismo de um penny” lhe disse tudo o que a ciência, a filosofia pagã e o mundo não tinham sabido sequer balbuciar. Disse-lhe o que ele de algum modo sempre ensinara, que o orgulho e o desespero eram um pecado, e que a forma mais feliz de estar no mundo era “resolvendo-se a ser humilde”.
A entrada de Chesterton no seio da Igreja Católica deu-se em 1922. Atrás deste passo estavam o escritor católico Hilaire Belloc, com quem Chesterton desde 1900 mantinha estreita amizade; um sacerdote com quem também teve longa e fecunda amizade, o Padre O’Connor, inspirador das histórias mais famosas de Chesterton (as histórias detetivesco-filosóficas do Padre Brown), e com quem faria a sua confissão geral. Não obstante, acima de tudo e fincada na sua alma, foi, como se assinalou antes, uma antiga devoção à Santíssima Virgem o que o levou definitivamente para a Igreja Católica: motivo, ademais, de um dos seus melhores veios poéticos (dedicou um precioso poema às suas dores, A Rainha das Sete Espadas). E na obra Por Que Me Converti ao Catolicismo Chesterton nos diz: “Creio poder assegurar que a primeira coisa a atrair-me no catolicismo foi em verdade, o que devia ter-me afastado dele […]. Recordo especialmente os casos em que as inculpações de dois autores sérios fizeram que me parecesse desejável precisamente o condenado. No primeiro, mencionavam […] com tremor e estremecimento, uma espantosa blasfêmia que tinham encontrado num místico católico a falar da Santíssima Virgem: ‘Todas as demais criaturas devem tudo a Deus, mas a ela Deus mesmo tem de estar agradecido’. Eu, pelo contrário, estremeci como se ouvisse um alto som de trombeta e disse quase em voz alta: ‘Que magnífico é isto!’ Pareceu-me como se o milagre da encarnação [ … ] mal se pudesse expressar melhor nem mais claramente”.
Na véspera da sua confissão, Chesterton passeava com o seu pequeno catecismo pelo jardim de casa, como um menino, sussurrando coisas e com uma felicidade mal contida. Dizia depois que o dia da sua primeira comunhão “foi o mais feliz da sua vida”. Quando lhe perguntavam o que o tinha levado a dar aquele passo, respondia: “a Igreja Católica é a única que realmente apaga os pecados”. E, se pensamos na melhor personagem criada por Chesterton, um humilde sacerdote que resolve casos policiais, o padre Brown, compreende-se até que ponto se sentia atraído pelo mistério único da confissão, pois criou um padrezinho aparentemente sem carisma, mas que ocultava um conhecimento profundo da alma humana. Chesterton quis ressaltar assim numa personagem: a peculiar sabedoria que vem de um confessionário e o poder de um sacerdote ao desfazer os pecados (em duas das melhores histórias, As Pegadas Misteriosas e O Martelo de Deus, o sacerdote confessa os delinquentes). Isto era inédito na narrativa policial, e por isso estas histórias, como tantas obras de Chesterton, possuem qualidades entremescladas que raramente se encontrarão noutro escritor: arte imaginativa e poética de grande qualidade e verdadeira fé.
O final de uma batalha
Como fruto da conversão, merecem especial atenção três obras-mestras: O Homem Eterno (1925), Santo Tomás de Aquino (1935) e a Autobiografia (1936). A primeira, conquanto menos difundida que Ortodoxia, é para muitos críticos a melhor obra de Chesterton. Ali ele reflete sobre a criatura chamada homem e sobre o homem chamado Cristo. É um compêndio da história da Humanidade, na qual intervém o mistério único de Deus encarnado, e da origem da Igreja Católica e do Cristianismo; tudo observado como pela primeira vez e de ângulos completamente novos. Chesterton consegue que o leitor veja as coisas à luz do senso comum e da lógica, e não segundo as teorias que aparentemente dão uma explicação satisfatória da origem do cosmo, do homem e da religião: “Muitas modernas histórias da humanidade começam com a palavra evolução. E isto porque há um não sei que de brando, de suave, de gradual, de tranquilizador na palavra e também na ideia. Naturalmente, não é uma palavra prática nem uma ideia aproveitável. Ninguém pode imaginar como o nada pôde evoluir até transformar-se em algo […]. É muito mais lógico começar dizendo: ‘no princípio Deus criou O céu e a terra’ […]. A palavra ‘evolução’ parece ter certa tendência a substituir a palavra ‘explicação’ […]. Um fato não é mais ou menos inteligível segundo a velocidade com que se cumpre […]. A feiticeira grega pôde transformar os marinheiros em porcos com um simples toquezinho da sua varinha de condão. Mas ver um marinheiro amigo nosso transformar-se paulatinamente em porco não seria muito mais tranquilizador”. É preciso ter muito mais fé para ver andar o mundo por si só, nascendo da grande explosão ou da “mãe rocha”; é preciso ter muito mais fé para crer na teoria de Einstein, que deixar entrar em todos os processos uma inteligência. Ou, se não, se cairá na fábula de Teilhard de Chardin, que nos diz que a “mãe rocha” pensa, que a matéria pensa. O homem demonstrou que, quando não aceita a inteligência divina na Criação, se obriga a dar alguma inteligência à matéria, ainda que caindo no absurdo .
Chesterton faz, ademais, um extraordinário estudo das profundas diferenças entre as religiões e a única religião verdadeira; a sua análise não parte de uma associação que une as religiões segundo um critério fácil e evidente; considera-as pelo que cada qual espiritualmente significa, estudando a verdadeira origem e sentido de cada uma delas. Para isto divide o estudo em “quatro epígrafes”: “Deus”, “Os Deuses”, “Os Demônios”, “Os Filósofos”. A Igreja Católica, diz Chesterton, “é de tal modo única, que é quase impossível dar uma prova sensível disso, pois o povo quer ser convencido por via de analogia: e não há caso análogo neste assunto”. Ideia que surgia novamente na Autobiografia: a teologia católica “é a única não só que pensou, mas que pensou sobre tudo. Que quase todas as demais teologias ou filosofias contêm alguma verdade, não o nego; ao contrário, é isso o que afirmo, e é disso que me queixo. Sei que todos os demais sistemas ou seitas se contentam com seguir uma verdade, teológica ou teosófica, ética ou metafísica; e, quanto mais reclamam-se universais, mais isso significa que colhem algo e o aplicam a tudo”.
Sobre a última biografia de Chesterton, Santo Tomás de Aquino, são reveladoras as palavras do especialista por excelência no tomismo, o francês Étienne Gilson: “Chesterton desespera qualquer pessoa. Estudei Santo Tomás a vida inteira, e nunca teria sido capaz de escrever um livro como este. […] Considero, sem comparação alguma, que é o melhor livro jamais escrito sobre Santo Tomás. Só um gênio podia fazer algo assim. Todo o mundo admitirá sem nenhuma dúvida que é um livro inteligente, mas poucos leitores que tenham passado vinte ou trinta anos estudando Santo Tomás de Aquino e tenham publicado dois ou três volumes sobre o tema poderão dar-se conta de que a chispa de Chesterton lhes deixou ao rés do chão a erudição. Adivinhou tudo o que eles tentavam expressar desajeitadamente com fórmulas acadêmicas. Chesterton era um dos pensadores mais profundos que existiram. Era profundo porque tinha razão, e não podia deixar de tê-Ia; mas tampouco podia deixar de ser modesto e amável; por isso, considerava-se um entre muitos, desculpava-se de ter razão e fazia-se perdoar a profundidade com o engenho”.
A Autobiografia é uma obra peculiaríssima. No último capítulo, por exemplo, faz uma defesa magistral do catolicismo servindo-se somente de “um dente de leão”. Encontraremos o melhor Chesterton, agradecido e comovido diante de Deus pela existência: “Um homem não se torna velho sem que o aborreçam; mas eu envelheci sem aborrecer-me. A existência é ainda uma coisa estranha para mim, e, como a um estrangeiro, dou-lhe as boas-vindas. Para começar, ponho o princípio de todos os meus impulsos intelectuais diante da autoridade à qual vim ao final, e descobri que estava aí antes que eu a pusesse. Encontro-me ratificado na minha realização deste milagre que é estar na vida; não de modo vago e literário, como o que usam os cépticos, mas num sentido definido e dogmático: o de ter recebido a vida pelo único que pode fazer os milagres”.
Desgastado por uma batalha ininterrupta, heroica em muitos casos, sem queixar-se nunca, Chesterton falecia em 14 de junho de 1936, aos sessenta e dois anos. Deixava todos os seus bens para a Igreja Católica, e, sobretudo, o bem incalculável de uma obra que foi reunida atualmente em quase quarenta volumes. Uma obra que contém não só todos os gêneros possíveis, mas todos os temas possíveis. O Papa Pio XI, grande admirador de Chesterton, a quem conhecera pessoalmente em Roma, dizia num telegrama dirigido ao povo da Inglaterra, por ocasião da morte do escritor: “Santo Padre profundamente consternado morte de Gilbert Keith Chesterton, devoto filho Santa Igreja, dotado defensor da Fé Católica”.