Ciência e Religião

G. K. Chesterton

Tradução: Mateus Leme

Capítulo do livro Considerando todas as coisas, 2013, editora Ecclesiae.

Hoje em dia acusam-nos de atacar a ciência por querermos que seja científica. Com certeza não cometemos nenhum desrespeito com nosso médico pelo fato de dizermos que é o nosso médico, e não nosso sacerdote, ou nossa esposa, ou nós mesmos. Não é tarefa do médico dizer que devemos ir a uma estação de águas; é sua função dizer-nos que certos resultados para a saúde ocorrerão se formos a uma estação de águas. Depois disso, obviamente, cabe a nós julgar. A ciência material é como a adição simples: ou é infalível ou é falsa. Misturar a ciência com filosofia é apenas produzir uma filosofia que perdeu todo o seu valor ideal e uma ciência que perdeu todo o seu valor prático. Desejo que meu médico particular me diga se esta ou aquela comida vai matar-me. Cabe ao meu filósofo particular dizer-me se eu deveria ser morto. Peço desculpas por enunciar todos estes truísmos. Mas a verdade é que acabei de ler um grosso panfleto escrito por uma grande quantidade de homens muito inteligentes que parecem nunca haver ouvido qualquer desses truísmos em suas vidas.

Aqueles que detestam o inofensivo autor desta coluna são geralmente reduzidos (em seu êxtase final de ira) a chamá-lo “brilhante”; algo que há muito tempo em nosso jornalismo tornou-se uma mera expressão de menosprezo. Mas temo que mesmo esse termo desdenhoso seja honroso demais para mim. Estou cada vez mais convencido de que sofro, não de uma reluzente ou vistosa impertinência, mas de uma simplicidade que beira a imbecilidade. Penso cada vez mais que devo ser muito estúpido, e que todos no mundo moderno devem ser muito espertos. Acabei de ler uma importante compilação que me foi enviada em nome de vários homens por quem tenho um grande respeito, chamada “Nova Teologia e Religião Aplicada”. E é literalmente verdade que li até o fim colunas inteiras daquilo sem saber do que os autores estavam tratando. Estariam falando sobre alguma negra e bestial religião em que haviam sido criados, e sobre a qual nunca sequer ouvi, ou então deviam estar falando sobre alguma ardente e ofuscante visão de Deus, que eles descobriram e eu não, e que por seu próprio esplendor confunde sua lógica e embarga sua fala. Mas o melhor exemplo que posso citar da obra está ligado a esse assunto da função da ciência material na terra, ao qual acabei de referir-me. As palavras a seguir estão escritas acima da assinatura de um homem cuja inteligência respeito, e não têm para mim nem pé nem cabeça:

“Quando a ciência moderna declarou que o processo cósmico não tinha conhecimento de nenhum evento histórico correspondente a uma Queda, mas contava, ao contrário, a história de uma incessante ascensão na escala dos seres, tornou-se muito claro que o esquema paulino – refiro-me aos processos argumentativos do plano de salvação de Paulo – perdeu seu próprio fundamento; pois esse fundamento não era a total depravação da raça humana, herdada de seus primeiros pais? … Mas agora não havia mais Queda; não havia mais depravação total, ou perigo iminente de condenação eterna; e, finda a base, caiu a superestrutura.”

Isso está escrito com seriedade e em excelente inglês; deve significar alguma coisa. Mas o que pode ser? Como a ciência material poderia provar que o homem não é depravado? Não se corta um homem para procurar seus pecados dentro dele. Não se ferve um homem até que comece a emitir os inconfundíveis vapores esverdeados da depravação. Como a ciência material poderia encontrar quaisquer traços de uma queda moral? Que traços o autor esperava encontrar? Esperava encontrar um fóssil de Eva com uma maçã fossilizada dentro? Imaginava que as eras teriam preservado para si um esqueleto completo de Adão preso a uma folha de figueira ligeiramente murcha? O parágrafo inteiro que citei é simplesmente uma série de sentenças inconsequentes, todas bastante falsas em si mesmas e irrelevantes em relação umas às outras. A ciência nunca disse que não poderia ter havido uma Queda. Pode ter havido dez Quedas, uma em cima da outra, e isso seria consistente com tudo o que sabemos das ciências materiais. A humanidade poderia ter se tornado moralmente pior por milhões de séculos, e isso de forma alguma contradiria o princípio da evolução. Os cientistas (que não são loucos desvairados) nunca disseram que houve “uma incessante ascensão na escala dos seres”; pois uma ascensão incessante significaria uma ascensão sem fracassos ou recaídas; e a evolução material está cheia de fracassos e recaídas. Houve certamente algumas quedas materiais; pode ter havido qualquer número de Quedas morais. Por isso, como disse, fico honestamente desnorteado quanto ao significado de passagens como esta, em que o homem avançado escreve que, uma vez que os geólogos não sabem nada sobre a Queda, qualquer doutrina sobre a depravação é falsa. Uma vez que a ciência não encontrou algo que obviamente não poderia encontrar, portanto algo completamente diferente – a percepção psicológica da maldade – é falsa. Seria possível resumir o argumento desse autor de forma abrupta, mas acertada, mais ou menos assim: “Não desenterramos os ossos do Arcanjo Gabriel, que presumivelmente não tinha nenhum; portanto, se deixarmos que meninos pequenos cuidem de si mesmos, não serão egoístas.” Para mim é tudo desvairado e rodopiante; como se alguém dissesse: “O encanador não consegue encontrar nada de errado com nosso piano; então suponho que minha esposa me ama.”

Não vou entrar aqui na verdadeira doutrina do pecado original, ou naquela versão provavelmente falsa que o autor da Nova Teologia chama a doutrina da depravação. Porém, fosse o que fosse a pior doutrina de depravação, foi um produto da culpa espiritual; não teve nada a ver com remotas origens físicas. Os homens pensaram que a humanidade era perversa porque eles mesmos sentiam-se assim. Se um homem se sente mau, não consigo entender por que deveria subitamente sentir-se bom porque alguém lhe diz que seus ancestrais alguma vez tiveram caudas. A pureza e inocência humana primordial pode ter caído com a cauda, pelo que sabemos. A única coisa que todos sabemos sobre aquela pureza e inocência primordial é que não a possuímos. Nada pode ser, no senso estrito da palavra, mais cômico do que contrapor algo tão nebuloso quanto as conjeturas feitas pelos mais vagos antropólogos sobre o homem primitivo contra algo tão sólido como a percepção humana do pecado. Por sua natureza, a evidência do Éden é algo que não é possível encontrar. Por sua natureza, a evidência do pecado é algo que não é possível deixar de encontrar.

Discordo de algumas afirmações; não compreendo outras. Se um homem diz, “Penso que a raça humana estaria melhor se se abstivesse totalmente de bebidas fermentadas”, entendo perfeitamente o que quer dizer, e como seu ponto de vista poderia ser defendido. Se um homem diz, “Quero abolir a cerveja porque sou um homem temperante”, sua afirmação não transmite nenhum significado a minha mente. É como dizer “Quero abolir as estradas porque sou um andarilho moderado”. Se um homem diz “Não acredito na Trindade”, entendo. Mas se diz (como uma mulher me disse uma vez), “Acredito no Espírito Santo em um sentido espiritual”, retiro-me aturdido. Em que outro sentido alguém poderia acreditar no Espírito Santo? E lamento dizer que esse panfleto de visões religiosas progressistas está cheio de observações desconcertantes como essa. O que as pessoas querem dizer ao afirmar que a ciência perturbou sua visão de pecado? Que espécie de visão de pecado tinham antes que a ciência a perturbasse? Achavam que era algo de comer? Quando as pessoas dizem que a ciência abalou sua fé na imortalidade, o que querem dizer? Será que pensavam que a imortalidade era um gás?

Obviamente a verdade é que a ciência não introduziu nenhum princípio novo no assunto. Um homem pode ser cristão até o fim do mundo, pela simples razão de que um homem poderia ter sido ateu desde o seu princípio. A materialidade das coisas está na cara; não se requer nenhuma ciência para encontrá-la. Um homem que viveu e amou cai morto e os vermes o devoram. Isto é materialismo, se quiserem. Isto é ateísmo, se quiserem. Se a humanidade acreditou apesar disto, pode acreditar apesar de qualquer coisa. Mas por que nossa raça humana se torna ainda mais desamparada por sabermos os nomes de todos os vermes que o devoram, ou os nomes das partes que devoram, é algo difícil a uma mente ponderada descobrir. Minha principal objeção a esses revolucionários semi-científicos é que não são revolucionários de forma alguma. São o partido da banalidade. Não abalam a religião: ao contrário, a religião parece abalá-los. Só conseguem responder ao grande paradoxo repetindo o truísmo.

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