É COISA QUE ME DIVERTE um bocado pensar que, em meio a todas as invocações do Natal e aos apelos à caridade natalina, eu provavelmente esteja numa minoria ao proferir qualquer elogio particular e positivo às bandas de Natal.* É perfeitamente corriqueiro celebrar-se esta época jovial com gracejos sobre as bandas de Natal; mas estes têm, no geral, o mesmo teor e sabor das piadas sobre as dívidas de Natal. Alardeia-se amiúde nos jornais (e, pois, deve ser verdade) que as simpatias sociais e os nobres sentimentos de fraternidade humana têm em todos os lugares crescido e se fortalecido, e de quando em vez chega a dizer-se mesmo que todas as classes estão a se achegar umas das outras, numa compreensão mútua. Estou certo de que quero que as coisas sejam assim; e mesmo creio que sejam assim, em certos aspectos sociais. O que constato, porém, é que em muita casa onde gerações anteriores acolhiam bandas e cantores de Natal, ainda que em segredo lhes murmurassem imprecações, com toda a cortesia e resignação exteriores dum Duque Teseu a assistir à peça de Píramo e Tisbe em Sonho de Uma Noite de Verão, não poucos desta geração mais recente perderam algo daquela paciência e daquela polidez. O que de mais a mais constato é que se podem ver, ao longo de largos distritos da civilização urbana moderna, ruas inteiras apinhadas de cartazes a proibir camelôs e os gritos de feirantes;* a fim de que a vetusta instituição do mascate ou a última remanescente da antiga música londrina não vá perturbar os que estão mui diligentemente ocupados, esperemos, a ler obras sobre a ética revolucionária dos economistas de Cambridge, a qual demonstra com tanta clareza a precisão de contatos sociais e a remoção de todas as barreiras que há entre classe e classe. Tendo lido, de minha parte, calhamaços sem conta de tais livros quando rapaz, ainda não me dei por satisfeito que se tenha aí algo invariavelmente mais humano e divertido do que as falas de Autolycus* ou a cantiga “Cherry-Ripe“.
Mas há algo especial a se falar sobre os cantores de Natal, posto ter a nossa tradição dito, desde sempre, para sermos aqui caridosos com estrangeiros, mesmo com mendigos. Por óbvio, cantores de Natal não são, em absoluto, mendigos. São pessoas a oferecer algo em troca de dinheiro; podemos não calhar de julgá-lo algo que valha o dinheiro, coisa que eu calho de pensar sobre mais ou menos uns três quartos das coisas que o mercado de negócios moderno mais alardeia e nos quer empurrar goela abaixo. Mas, à medida em que muitos de nós pagamos pelo entretenimento, mesmo quando poderíamos passar muito bem sem o entretenimento, e fazemo-lo à força da caridade, as bandas ou coros de Natal na mesma classe dos mendigos podem pois, neste sentido, ser colocadas na mesma classe dos mendigos, e afundar instantaneamente até a condição degradada de Homero ou São Francisco de Assis. E é acerca deste problema dos mendigos, ou daqueles que sob certo aspecto são como mendigos, que eu me proponho a fazer uma pergunta geral e traçar uma igualmente geral comparação.
Eu de minha parte calho de representar, mais ou menos, uma filosofia moral geral que até há muito pouco era a filosofia moral geral de quase todas as nações e, mesmo, de quase todas as confissões religiosas na Europa. E não havia outra coisa, naquela tradição geral de nossos pais, mais criticada pelos nossos contemporâneos do que o suposto contentamento que ali havia com a caridade casual e esporádica; ou, noutras palavras, com o hábito de se dar dinheiro aos mendigos. Ora, há um paralelo um tanto interessante aqui, entre a atitude do século dezenove para com o problema do mendigo e a atitude do século vinte para com o problema do soldado. Não raro, e isto para a desgraça indizível dos governos, um e outro eram a mesma pessoa. Havia uma cantiga em minha infância, que dizia: “Aí vem, de Botany Bay, um soldado pobre a marchar / Que é que você tem para lhe dar?” Aos olhos de muitos humanitários e filantropos científicos modernos (que, por certo, não teriam nada para dar) o sujeito estava acometido por uma sorte de crescendo e uma série de crimes; horrendo porque um mendigo; horrendo porque um condenado, de Botany Bay ou de qualquer outra prisão; e horrendo sobretudo porque um soldado. Mas tanto como mendigo quanto como soldado tem-se no homem uma chance de se explicar um certo ponto de vista, bastante antiquado já, e que suspeito ser incognoscível à maior parte das gentes modernas.
Aqueles modernos que, mais do que quaisquer povos ou indivíduos antigos, rejeitaram e criaram asco aos mendigos não eram meramente brutais ou mesquinhos. A coisa ficou talvez pior do que nunca no auge do negror do individualismo industrial, quando mesmo as teorias eram brutais e mesquinhas; poderíamos dizer quase, em alguns casos, que os ideais eram brutais e mesquinhos. Mas isto seria injusto para com muitos teóricos e idealistas que realmente criam, ali, em teorias e ideais econômicos plausíveis. A primeira teoria a tomar a frente e alastrar-se era algo como isto: que era antieconômico e, pois, antiético, consertar a posição de pessoas que estavam na posição errada e mesmo no lugar errado. A teoria era que tal pessoa iria, ao fim e ao cabo, encontrar o lugar que lhe cabia quando toda a comunidade econômica pudesse alinhar-se, e cada indivíduo estivesse a conseguir a produção mais barata ao lucro ou preço apropriado. O ideal, por vago que fosse, consistia em haver uma comunidade na qual todos estivessem a viver de modo produtivo e lucrativo, e ninguém estivesse a viver de modo improdutivo e não-lucrativo. Dado o ideal, ou qualquer crença real no ideal, não é difícil de se entender que ali o mendigo é uma anomalia que deveria desaparecer. Infelizmente, foi-se o ideal e continuou o mendigo. Ninguém hoje em dia crê que se haverá de levar cabo, à força apenas do mero individualismo e da competição, aquele paraíso econômico de dar-e-receber. A morte da ilusão foi acelerada pelos socialistas. E seja lá o que possa haver de errado com o socialismo, está ele completamente certo quanto ao que há de errado com o individualismo. Mas o socialista, tanto quanto o individualista, necessária e naturalmente tinha o mendigo na conta de anomalia a ser abolida. A sua solução para aboli-lo era planejar uma série de utopias em que o Estado haveria de encontrar o melhor emprego para todos e pagar a todos o melhor salário. Não estou a criticar as utopias agora; ou, melhor dizendo, estou a criticar-lhes apenas um pequeno ponto. Na medida em que se tem o argumento, não há nada de errado nem com o argumento, nem com as utopias — salvo que as utopias nunca aconteceram. Mesmo entre os bolcheviques, onde algo aconteceu, o que aconteceu não foi a abolição da mendicância, tenha sido isto ou não culpa dos bolcheviques. Um homem rico na fome da Ucrânia haveria de deparar com o mesmo problema dos mendigos do que um homem rico na fome da Irlanda. Ora, quando assim se levanta e cai uma teoria após a outra, e se faz e se quebra uma promessa utópica após a outra, não seria compreensível alguns de nós julgarem ser uma boa ideia salvar um homem que seja da fome, enquanto o mundo está a se decidir sobre quantos séculos haverão de se passar até que o mal suma da face da Terra?
Como já deixei dito no início, há algo da mesma natureza em se tolerar o soldado e se tolerar o mendigo. Ninguém quer que lute ou se peça nas ruas. Quando, porém, quebra-se uma promessa de paz universal atrás da outra, e quantas conferências há no mundo abandonam a tarefa de se estabelecer a justiça internacional, será assim tão estranho, tão incompreensível que algumas pessoas ainda queiram lutar para defender a justiça nacional, no sentido da justiça à sua própria nação? E se o mendigo e o soldado parecem ainda estar aqui, uma vez que ainda estão eles aqui — então me parece ser melhor considerá-los não como máculas ou pestes, mas, sim, à luz das virtudes tradicionais, associadas à tragédia; um à luz da caridade, o outro à luz da cavalaria. Não espero que todos, ou mesmo que alguém, vá subscrever totalmente esta visão, mas espero, sim, que alguém irá ao menos aceitar o dever no caso das bandas ou coros de Natal.
*Christmas waits: bandas de músicos, no mais das vezes amadores, que costumavam tocar, na época de Natal, em frente às casas e onde mais houvesse gente por uns trocados.
*Street cries: não apenas gritos, mas músicas e cantigas rimadas.
*Conquanto personagem originalmente da mitologia grega, creio que Chesterton esteja aí se referindo a Autolycus como personagem principal do famoso ensaio de Thomas de Quincey, de que GKC era fã confesso, “On Murder Considered as one of the Fine Arts”.