G.K. Chesterton * 1874 / + 1936
Traduzido do inglês por Pedro G. Menezes
Do ensaio “Sobre o industrialismo” da obra “All I Survey”;
o ensaio original foi publicado como coluna no Illustrated London News em 16 de julho de 1932.
Está cada dia mais evidente que aqueles dentre nós, que se agarram a credos e dogmas esfarelados e defendem as tradições moribundas da Idade das Trevas, logo defenderão sozinhos o mais obviamente decadente dentre todos esses antigos dogmas: a ideia chamada Democracia. Não levou nem uma geração, nem mesmo minha própria geração, para derrubá-la do topo do sucesso, ou suposto sucesso, rumo a um profundo fracasso, ou renomado fracasso. Ao final do século dezenove, milhões de pessoas aceitavam a democracia sem saberem por quê. Ao final do século vinte, milhões de pessoas provavelmente rejeitarão a democracia, também sem saberem por quê. Nesta linha reta, estritamente lógica e inabalável, a mente do homem avança pelo grande caminho do progresso.
De qualquer modo, neste momento a democracia está sendo não apenas abusada, mas abusada muito injustamente. Os homens acusam o sufrágio universal simplesmente porque não são esclarecidos o suficiente para acusar o pecado original. Há um teste simples para determinar se os males políticos comuns tem origem no pecado original, um teste que nenhum ou pouquíssimos desses descontentes modernos fazem: definir qualquer tipo de afirmação moral para algum tipo de sistema político. A essência da democracia é muito simples e, como disse Jefferson, auto-evidente. Se dez homens naufragaram juntos numa ilha deserta, a comunidade consiste nesses dez homens, o bem-estar deles é o objeto social, e normalmente a vontade deles é a lei social. Se eles não tem uma reivindicação natural para governarem a si mesmos, qual deles terá a reivindicação natural para governar os outros? Dizer que o mais inteligente ou o mais corajoso deve governar é invocar uma questão moral. Se seus talentos são usados para a comunidade, ao planejar viagens ou destilar água, então ele é servo da comunidade, e ela é, neste sentido, seu soberano. Se seus talentos são usados contra a comunidade, roubando rum ou envenenando a água, por que a comunidade deveria se submeter a ele? E há chance de que ela o fará? Em um caso simples como este, todos podem ver o fundamento popular da coisa e a vantagem do governo por consenso. O problema com a democracia é que ela, nos tempos modernos, nunca tem a ver com um caso tão simples. Em outras palavras, o problema da democracia é que não é democracia. São certas coisas artificiais e antidemocráticas que de fato tem adentrado no mundo moderno para frustrar e destruir a democracia.
Modernidade não é democracia; maquinaria não é democracia; a submissão de tudo à troca e ao comércio não é democracia. Capitalismo não é democracia — é, por tendência e sabor, e admitidamente, bem contrário à democracia. Plutocracia, por definição, não é democracia. Mas todas essas coisas modernas entraram forçadas no mundo mais ou menos no momento, ou logo após ele, em que grandes idealistas como Rousseau e Jefferson pensavam sobre o ideal democrático da democracia. Pode-se dizer que o ideal era muito idealista para vingar. Mas não se pode dizer que o ideal que fracassou fosse o mesmo das realidades que vingaram. Uma coisa é dizer que um tolo entrou na selva e foi devorado por feras selvagens; outra é dizer que o tolo sobreviveu como a única fera selvagem. Na prática, a democracia tinha tudo contra ela, e isso, em teoria, talvez seja algo contra a democracia. Pode-se argumentar que a vida humana está contra ela. Mas é certo que a vida moderna, em qualquer dimensão, está contra ela. O mundo industrial e científico dos últimos cem anos é um lugar muito mais inadequado para a experiência do autogoverno do que aquele encontrado nas antigas condições da vida agrária ou nômade. A vida senhorial do feudo não era uma democracia, mas poderia se transformar em uma democracia muito mais facilmente. A vida camponesa posterior na França e na Suíça foi, de fato, transformada em democracia com facilidade. Porém, é terrivelmente difícil transformar aquilo que chamamos de democracia industrial moderna em uma democracia.
É por isso que hoje muitos homens passaram a dizer que o ideal democrático afastou-se do espírito moderno. Concordo plenamente, e obviamente prefiro o ideal democrático, que ao menos é um ideal e, portanto, uma ideia, ao espírito moderno, o qual é simplesmente moderno e, portanto, já está ficando velho. Percebo que os excêntricos, que podem ser chamados educadamente de idealistas, já se apressam a descartar este ideal. Um conhecido pacifista, com quem debati em jornais radicais na minha época radical e que depois tornou-se um modelo de republicano da nova república, apareceu outro dia para dizer: “a voz do povo é geralmente a voz de Satanás”. A verdade é que esses liberais nunca acreditaram de verdade no governo popular, não mais do que qualquer coisa popular, como os pubs ou a loteria de Dublin. Eles não acreditaram na democracia que invocaram contra reis e padres. Mas eu acreditei nela, e ainda acredito nela, embora prefira invocá-la contra arrogantes e modistas. Eu ainda acredito que ela seria o tipo de governo mais humano, se pudesse ser experimentada numa época mais humana.
Infelizmente, o humanitarismo tem sido a marca de uma época desumana. E por desumanidade não me refiro à mera crueldade, mas à situação em que até mesmo a crueldade deixa de ser humana. Refiro-me à situação na qual o homem rico, ao invés de enforcar seis ou sete inimigos que ele odeia, simplesmente permite que mendiguem e morram de fome seis ou sete mil pessoas que ele não odeia e nunca viu, porque elas vivem no outro lado do mundo. Refiro-me à situação na qual o empregado do homem rico, ao invés de preparar com animação um veneno raro e original para os Borgias ou esculpir um punhal ricamente ornamentado para os propósitos políticos dos Médici, trabalha com monotonia em uma fábrica apertando um pequeno parafuso, que vai se encaixar numa placa que ele nunca verá, a qual será uma peça de uma arma que ele nunca verá, que será usada numa batalha que ele nunca verá, uma luta que ele conhece muito menos do que o vassalo da Renascença conhecia sobre os propósitos do veneno e do punhal. Em resumo, o problema do industrialismo é a falta de direção; o fato de que nada é direto, que todos os caminhos são tortuosos mesmo quando deviam ser retos. No mais indireto dos sistemas, tentamos encaixar a mais direta das ideias. A democracia, um ideal excessivamente simples, foi levianamente aplicada a uma sociedade complexa ao ponto da loucura. Não é surpresa que esta visão tenha-se desvanecido nesse ambiente. Pessoalmente gosto da visão, mas o mundo contém os mais variados tipos; e há seres humanos, perambulando calmamente à luz do dia, que parecem realmente gostar desse ambiente.