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Dragões mortos, então e agora

“Dead Dragons, Then a Now”, January 16, 1932. The Collected Works of G.K. Chesterton, Volume 21
Por Gilbert Keith Chesterton
Tradução de Raul Martins, tradutor do livro de Chesterton “Um esboço de Sanidade“

 

Vi, neste jornal — a cintilar com boas e científicas novas –, que um peixe de sangue verde fora encontrado no mar; de fato, uma criatura toda esverdeada, e além de verdosa até este ichor* que lhe corre nas veias, enorme e peçonhenta. De algum modo, foi debalde que tentei tirá-lo da cabeça, vez que o título sugeria um refrão perfeito para uma Balada: um peixe de sangue verde foi encontrado no mar. Afinal, a coisa tem uma aplicação crítica e filosófica das mais largas. Eu mesmo tenho conhecido tantos peixes de sangue verde cá na terra, andando pelas ruas e sentados pelos clubes, sobretudo nos comitês. Peixes de sangue verde à farta têm escrito livros e críticas de livros, têm lecionado em instituições de ensino e fundado escolas de filosofia, de modo que poucos lhes falta para que façam de si mesmos o produto biológico típico do estágio atual da evolução.

Não há um debate que seja na Casa dos Comuns, especialmente sobre a eugenia ou a amputação compulsória dos pobres, que não tenha peixes de sangue verde aos montes, com as caudas mantendo-lhes eretos para os seus discursos. Onde houver uma petição ou carta à imprensa urgindo pela transformação das tabernas em casas de chá ou museus locais, lá haverá toda uma fileira desses peixes e seu esverdeado sangue; peixes, aliás, fedorentos que só. Por alguma razão, contudo, o fardo dessa balada não-existente não se me despegou da cabeça, e acabou por volver-me os pensamentos na direção de monstros peçonhentos no geral; de todos aqueles dragões, híbridos e sanguinolentas criaturas que figuram, em histórias primitivas, como os principais inimigos do homem. Já se sugeriu que tais lendas na verdade referem-se a algum período pré-histórico em que o homem, à força das circunstâncias, tinha de bater-se com animais gigantescos que desde então se extinguiram. E, então, ocorreu-me: suponha que os heróis primitivos os tenham matado justo quando estavam a extinguir-se. Quero dizer, suponha que teriam sido extintos, mesmo se o Homem das Cavernas, não se dando ao trabalho de os exterminar, houvesse escolhido uma pedra em sua caverna, nela se sentado confortavelmente e feito coisa nenhuma.

Suponha que Perseu tenha transformado o monstro marinho em pedra quando este já andava avançado no processo de transformar-se num fóssil. Suponha que São Jorge tenha chegado, não apenas logo antes da morte da Princesa, mas logo antes da morte do Dragão. Suponha que ele tenha irrompido, indelicado que só, no leito de morte do monstrengo, e apenas tenha finalizado com a lança o trabalho de verdade que o dragão-doutor fizera com a lanceta. Em suma, será que os heróis poderiam ter-se poupado ao trabalho de lutar tão-só houvessem medido a pulsação ou checado a temperatura do moribundo inimigo da humanidade? O dragão é pintado sempre com mandíbulas escancaradas, das quais desponta uma língua bifurcada e chamejante. Mas, quem sabe, ele esteja apenas mostrando uma língua ao seu médico particular? Vá saber se todos os monstros que figuram em canções e histórias não estivessem mal das pernas, física tanto quanto moralmente. Parando pra pensar um pouco, isso bem que poderia explicar o peixe de sangue verde que foi encontrado no mar. Talvez não seja uma espécie, mas, sim, uma doença. Quem sabe o peixe com seu sangue esverdeado padeça, se não precisamente de anemia, ao menos de alguma forma sutil de cloranemia pisciana, ou de seja lá o nome que receberá a obscura enfermidade assim que descoberta. Ocorre que os pescadores científicos o safaram de todos os seus problemas, assim como Perseu acelerara o processo de ossificação crônica da criatura.

A fantasia pode criar variações sem conta às histórias de fadas. Nos é dito sempre como a caverna do monstro ou gigante está cercada pelos ossos de milhares de vítimas. Podemos imaginar o herói a contá-los, cuidadoso, e fazer cálculos sobre o estágio de indigestão a que deve ter chegado qualquer monstrengo depois de semelhante refeição. No departamento especial de Gigantes há uma história sobre Jack o Matador de Gigantes e uma polenta, enfim devorada pelo Gigante. Eu de minha parte não sei o que é uma polenta, mas imagino que a refeição tenha sido algo de esbaforida. Isso tudo não poderia ser bom para a saúde dos Gigantes como um todo. Dickens, aliás, conhecedor ele mesmo de vários Gigantes, dá testemunho de como é delicada a constituição dos titânicos.

Admito, porém, que, enquanto meu subconsciente à larga divagava sobre o antiquíssimo tema, eu entrava a pensar em sua aplicação moderna. Por vezes me pergunto se vale a pena atacar todo e qualquer monstro de anarquia e absurdidade moderna tal como surgem no campo do pensamento, ou se eles não haveriam de se matar mesmo se não fossem mortos. Muita vez, parecem matar-se quase rápido demais para que consigamos matá-los. Contra alguns, hoje mortos há anos, lembro-me de haver travado guerras por meses a eito. Lembro-me de gigantes de blasfêmia ou filosofia bárbara; titãs que à força do gigantismo pareciam não apenas sobrancear a terra como obstruir o firmamento. Qual Golias, lançaram desafio a um mundo que, à vista de todas as ossadas que lhes cercavam as cavernas, acautelara-se quanto a aceitá-lo. Agora, contudo, são seus ossos que jazem espalhados, e mesmo um trapeiro dificilmente abaixar-se-á para pegá-los.

À guisa de exemplo, havia Haeckel e o cru e concreto materialismo de seus dias. Por anos a fio, ocupei minha vida com a peleja contra o Sr. Blatchford e outros sobre o homem, apontando as falácias, para não dizer as inverdades, de Haeckel. E onde está ele agora? O sr. Blatchford parece ter esquecido tudo sobre Haeckel, exemplo seguido por todos os demais. Os novos homens de ciência rejeitaram-no por completo. Bem me recordo, porém, de quando cada novo homem da ciência, e sobretudo homens da nova ciência da sociologia ou eugenia (um peixe de sangue verde foi encontrado no mar), haviam-no aceitado como o fundador de uma nova religião. E de quando o sr. Belloc escrevera a envoi¹ de outra Balada

 

—“Prince, if you meet upon a bus

A man who makes a great display

Of Dr. Haeckel, argue thus,

The wind has blown them all away”* —

 

*”Príncipe, se no ônibus topar / em homem a sobre Haeckel palestrar / não deixe de lhe falar / como o vento para longe entrou todos a soprar.”

Versos que à época tinham algo duma audácia profética. Hoje, soam como truísmos: tornaram-se verdade.

Então, veio Lombroso e todo o charlatanismo daquilo a que chamavam criminologia. Lembro-me de quando Lombroso soava como o nome de Newton ou Faraday; agora, não vejo menções frequentes ao nome, que dirá entre homens de ciência. É para a eterna glória do sr. H. G. Wells que mesmo então, conquanto tomasse o partido materialista em muitas questões, ele tenha denunciado o dogmatismo prematuro com que pedantes tagarelavam sobre o “crânio criminal” ou a “orelha criminosa,” e que conclamavam os jovens e ingênuos a carimbarem tendências criminosas hereditárias por meio de seleção ou segregação (um peixe de sangue verde foi encontrado no mar). Será que valeu a pena altercar com toda a grande ciência da criminologia no final do século dezenove? O dragão teria morrido de morte natural, se é que lhe havia qualquer coisa de natural.

Poderia relatar inúmeros outros casos; controvérsias outras com coisas moribundas que eu julgara dominantes; com coisas de fato já mortas. Houve a proposta de que gente pobre demais para mover uma ação judicial por calúnia deveria ser posta numa lista negra como escroques que gostavam demais de cerveja (um peixe de sangue verde foi encontrado no mar); houve a teoria absurda que dizia ser hereditário gostar muito de cerveja, seguida pela proposta (levada a cabo pelos peixes) de que os bebedores de cerveja deveriam ser proibidos de criar seus filhos. Havia toda a suposição de que nada senão a perfeição poderia ser o resultado final de algo feito pelo Estado, e que seus funcionários públicos eram todos Super-Homens. Eis aí o que foi, outrora, o nosso pesadelo. Enfrentá-lo, porém, era bater num cachorro que, se não morto, estava ao menos nas últimas. Eu, por mim, arrependo-me de ser assim tão desumano.

 

1 . Envoi ou envoy: estrofe curta que em certas formas de verso, como por exemplo a Balada de que Chesterton está a falar, é dedicatória ou sumário de suas principais ideias.

 

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