G.K. Chesterton
Traduzido por Cristian Clemente, do The Defendant (O defensor, 1901)
Retirado do site da Quadrante
Num dos geniais ensaios tirado do livro The Defendant (O defensor, 1901), o autor explica por que um homem que assume um compromisso é verdadeiramente livre e sensato.
Se, diante de todos os seus amigos e colegas, um homem moderno bem-sucedido, de cartola e sobrecasaca, jurasse contar as folhas de cada terceira arvora da Holland Walk, ou pular num pé só por toda a Londres às quintas-feiras, repetir setenta e seis vezes o tratado de Mill sobre a liberdade, coletar 300 dentes-de-leão nos campos de qualquer um cujo sobrenome seja Brown, permanecer trinta e uma horas segurando a sua orelha esquerda com a mão direita, cantar os nomes das suas tias em ordem de idade no teto de um ônibus, ou realizar qualquer tarefa incomum, concluiríamos imediatamente que se trata de um louco ou, como algumas vezes se diz, de “um artista na vida”. Contudo, tais votos não são mais extraordinários que aqueles feitos na Idade Média e em épocas similares não apenas por fanáticos, mas pelas grandes figuras cívicas e nacionais da civilização – por reis, juízes, poetas e sacerdotes. Um homem jurava acorrentar duas montanhas juntas, e logo uma grande cadeia pendia delas, dizia-se, por eras, como um monumento àquela loucura mística. Outro jurava encontrar o caminho para Jerusalém com uma venda sobre os olhos e morria a procurá-lo. Não é fácil, do ponto de vista estritamente racional, julgar esses dois feitos mais sensatos que aqueles sugeridos acima. Uma montanha é geralmente um objeto estacionário e seguro que não precisa ser preso de noite como um cachorro. E não é fácil enxergar a grande lisonja que um homem presta à Cidade Santa ao partir na sua direção sob condições que fazem da sua chegada algo extremamente improvável.
Mas há nisso algo de notável que merece atenção. Se os homens agissem dessa maneira no nosso tempo, deveríamos, como já dissemos, olhá-los como símbolos da “decadência”. Mas os homens que faziam tais coisas não eram decadentes; geralmente pertenciam à classe mais robusta daquela que é geralmente considerada uma época robusta. Ainda assim, haverá quem afirme que, se esses homens essencialmente sensatos realizaram tamanhas insensatezes, foi por estarem sob a caprichosa guia de um sistema religioso repleto de superstições. O que também é um argumento furado, pois os príncipes medievais exibiram, até nos campos puramente terrenos e mesmo sensuais da vida como o amor e a concupiscência, as mesmas promessas e atuações loucas, a mesma imaginação tresloucada e o mesmo auto-sacrifício monstruoso. Eis uma contradição que para ser explicada torna necessária uma reflexão sobre toda a natureza dos votos desde o começo. E se considerarmos a natureza dos votos com seriedade e acerto chegaremos, a não ser que eu esteja muito enganado, à conclusão de que é perfeitamente sensato, e mesmo razoável, prometer acorrentar uma montanha na outra e que, se é para falarmos de insanidade, é um pouco insano não o fazer.
O homem que faz um voto marca um compromisso consigo mesmo num tempo ou lugar distantes. O arriscado é que ele pode não manter o compromisso. E nos tempos modernos, esse medo de si mesmo, da fraqueza e mutabilidade próprias, cresceu perigosamente e é a base real da objeção que se tem a quaisquer tipos de votos. Um homem moderno abstém-se do juramento de contar as folhas de cada terceira árvore da Holland Walk não porque seria bobo fazê-lo (ele faz muitas coisas mais bobas que essa), mas porque tem a profunda convicção de que, antes de chegar à trecentésima septuagésima nona folha da primeira árvore, estará terrivelmente cansado da história e quererá ir para a casa tomar chá. Em outras palavras, receamos que nesse momento será, como diz a expressão comum mas horrenda, um outro homem. Ora, esse medonho conto de fadas de um homem transformando-se continuamente em outros homens é a própria alma da decadência. Pareceria um pesadelo que John Paterson, com aparente calma, esperasse ansiosamente para ser um certo General Barker na segunda-feira, Dr. Macgregor na terça, Sir Walter Carstairs na quarta e Sam Slugg na quinta; só que a esse pesadelo damos o nome de cultura moderna. Um grande decadente [Oscar Wilde], agora morto, publicou há tempos um poema no qual resumia poderosamente todo o espírito desse movimento, declarando que podia permanecer no pátio da prisão e compreender inteiramente os sentimentos de um homem prestes a ser enforcado:
For he that lives more lives than one
More deaths than one must die.´
[“Porque aquele que vive mais de uma vida
Deve morrer mais de uma morte”]
E o cúmulo de tudo isso é o horror enlouquecedor da irrealidade que desce sobre os decadentes, comparado ao qual a própria dor física tem o frescor de uma jovialidade. O inferno mais infernal que podemos imaginar é estarmos eternamente atuando numa peça teatral, sem a menor e mais suja coxia onde ser verdadeiramente humanos. E essa é a situação do decadente, do esteta e dos partidários do amor livre. Estar para sempre passando por perigos que sabemos que não nos poderão ferir, fazer juramentos que sabemos que não nos vinculam a nada, desafiar inimigos que sabemos que não nos podem derrotar: eis a risonha tirania da decadência que é chamada de liberdade.
Voltemo-nos, por outro lado, ao homem que faz votos. O homem que fez um voto, não importa quão louco, deu uma expressão saudável e natural à grandeza de um momento. Jurou, por exemplo, acorrentar uma montanha a outra, talvez para simbolizar um grande alívio, ou um amor ou uma aspiração. Não importa quão curto foi o momento da sua decisão; foi, como todos os momentos grandiosos, um momento de imortalidade, e o desejo de dizer exegi monumentum aere perennius [“Erigi um monumento mais duradouro que o bronze” (Horácio)] era o único sentimento capaz de satisfazer a sua alma.
Claro: o esteta moderno facilmente veria a oportunidade emocional; juraria acorrentar uma montanha a outra. Mas também juraria com a mesma jovialidade acorrentar a Terra à Lua. E a consciência tranqüilizadora de não querer realmente dizer aquilo, de na verdade não estar dizendo nada de grande importância, tirará dele exatamente aquela percepção do risco real que é a emoção de se fazer um voto. Pois o que pode ser mais enlouquecedor que uma existência em que a nossa mãe ou a nossa tia recebesse a informação de que estamos para assassinar o rei ou construir um templo em Ben Nevis [a montanha mais alta das Ilhas Britânicas] com a serenidade genial de costume?
A revolta contra os votos do nosso tempo foi levada tão longe a ponto de atingir até os tradicionais votos de casamento. É assaz divertido ouvir os opositores do matrimônio acerca desse assunto. Parecem imaginar que o ideal de constância foi um jugo misteriosamente imposto à humanidade pelo demônio em vez de ser o que de fato é: um jugo que os amantes consistentemente impõem a si próprios. Inventaram uma expressão; uma expressão que é como misturar de água e óleo em duas palavras: “amor livre”, como se um amante alguma vez já tivesse sido ou pudesse algum dia vir a sê-lo. É da natureza do amor prender a si próprio, e a instituição do matrimônio apenas dá ao homem médio a consideração de tomar em sério a sua palavra. Os sábios modernos oferecem ao amante, com uma risada falsa e amarga, as maiores liberdades e a mais completa irresponsabilidade; mas não o respeitam como a velha Igreja fazia; não lhe escrevem o juramento no alto dos céus para registrar o seu momento mais subido. Dão-lhe todas as liberdades exceto a liberdade de vender a sua liberdade, que é a única que o amante deseja.
Temos um retrato vivo desse estado de coisas na brilhante peça de Bernard Shaw The Philanderer (“O galanteador”). Charteris é um homem sempre esforçando-se por ser um amante livre, que é o mesmo que esforçar-se por ser um solteiro casado ou um negro branco. Perambula numa busca faminta por certo tipo de excitação que só poderá obter quando tiver a coragem de parar de perambular. Os homens dos velhos tempos – os tempos dos heróis de Shakespeare, por exemplo – sabiam mais. Quando os homens de Shakespeare eram de fato solteiros, louvavam as indubitadas vantagens da solteirice, liberdade, irresponsabilidade, da oportunidade de estar-se em contínua mudança. Mas não eram tão tolos a ponto de continuar falando de liberdade quando estavam sob circunstâncias em que alguém os poderia fazer felizes ou infelizes com apenas um golpe de vista. Suckling [John Suckling (1609-42), poeta e dramaturgo inglês] põe o amor ao lado das dívidas no seu louvor da liberdade.
´And he that´s fairly out of both
Of all the world is blest.
He lives as in the golden age,
When all things made were common;
He takes his pipe, he takes his glass,
He fears no man or woman.´
[“E aquele que está bem livre de ambos
é o homem mais bem-aventurado do mundo.
Vive na Idade de Ouro,
Quando todos os bens eram comuns,
Toma o seu cachimbo e o seu copo
Não teme nenhum homem, nenhuma mulher”]
Eis uma posição perfeitamente racional, possível e viril. Mas o que os amantes têm que ver com as afetações ridículas de não temer nenhum homem, nenhuma mulher? Sabem que a máquina celeste até a última estrela pode tornar-se um instrumento de tortura ou de música apenas com um gesto. Ouvem uma canção mais antiga que a de Suckling, que sobreviveu a uma centena de filosofias. “Quem é esta que surge como a aurora, bela como a lua, brilhante como o sol, temível como um exército em ordem de batalha?” [Cânt 6, 10]
Como dissemos, é precisamente essa porta dos fundos, a noção de ter um esconderijo atrás de nós, que é, na nossa visão, o espírito que esteriliza os prazeres modernos. Por toda a parte há a tentativa insana e persistente de obter-se prazer sem pagar. Assim, na política, os demagogos modernos chegam quase a dizer: “Tenhamos todos os prazeres dos conquistadores sem as dores dos soldados: sentemos nos nossos sofás e sejamos um povo forte”. Assim, na religião e na moral, os místicos decandentes dizem: “Tenhamos a fragrância da pureza mística sem as angústias do autodomínio; cantemos hinos à Virgem e depois a Príapo” [deus grego da fertilidade]. “Assim, no amor, dizem os amantes livres: “Tenhamos o esplendor de oferecer-nos sem o perigo de comprometermo-nos; vejamos se alguém é mesmo capaz de cometer suicídio ilimitado número de vezes”.
As coisas absolutamente não funcionam assim. Sem dúvida, há momentos emocionantes para o espectador, para o amador e para o esteta; mas há uma emoção conhecida apenas pelo soldado que luta pela sua própria bandeira, pelo asceta que se submete à fome para atingir a própria iluminação, pelo amante que finalmente faz a própria escolha. E é essa autodisciplina transfiguradora que faz de um voto algo verdadeiramente sensato. Mesmo a fome gigante da alma do amante e do poeta satisfez-se ao saber que, por causa de um momento de decisão, aquela estranha corrente penderia dos Alpes por séculos, entre o silêncio das estrelas e neves. Ao nosso redor está a cidade dos pequenos pecados, repleta de esconderijos e saídas de emergência, mas com certeza, cedo ou tarde, a chama imponente levantar-se-á da baía anunciando que o reino dos covardes acabou e que um homem está queimando as suas naus.