G. K.Chesterton
Traduzido por José Blanc
Trecho do livro“Disparates do Mundo”, Livraria Morais Editora, Lisboa, 1958, págs. 14-19.
Há uma anedota filosófica popular que caracteriza as infindáveis e inúteis discussões dos filósofos; refiro-me à questão sobre qual apareceu primeiro, a galinha ou o ovo. Não tenho bem a certeza de que a questão seja tão fútil como isso, se bem a compreendermos. Não tenho aqui que tratar dessas profundas questões teológicas e metafísicas, das quais o problema da galinha e do ovo é frívolo mas feliz exemplo. O materialismo evolucionista está representado apropriadamente na visão de todas as coisas surgindo de um ovo, vago e monstruoso germe oval, auto-posto por acidente. A outra escola de pensamento, sobrenatural (à qual pessoalmente adiro), não será muito mal representada pela idéia de que este nosso mundo arredondado não passa de um ovo chocado por uma ave sagrada e não gerada – a pomba mística de que falam os profetas. É contudo para função muito mais humilde que eu aqui invoco a tremenda potência de tal distinção. Esteja ou não o pássaro vivo no início da nossa cadeia mental, é absolutamente necessário que o esteja no final da dita cadeia. A ave é o nosso alvo – não para espingardas, mas para ser tocada com a varinha de condão criadora da vida. O essencial para pensarmos acertadamente é lembrarmo-nos de que o ovo e o pássaro não devem ser considerados como ocorrências cósmicas de igual importância, sucedendo-se uma à outra por toda a eternidade. Não as convertamos em mero padrão ovo-pássaro como o modelo “ovo-e-flecha”. Um é meio; outro, fim; situam-se em mundos mentais diferentes. Pondo de lado as complicações da mesa do pequeno almoço, em princípio o ovo existe unicamente para produzir o pinto. Mas o pinto não existe apenas para vir a produzir outro ovo. Pode existir também para se divertir, para louvar a Deus, ou até para sugerir idéias a um dramaturgo francês 1. Sendo uma vida consciente, tem ou pode ter um valor pessoal. Pois bem, a nossa política moderna está cheia de ruidoso esquecimento; esquece-se de que a produção daquela vida feliz e consciente é, apesar de tudo, a finalidade de todas as complexidades e compromissos. Falamos apenas de homens úteis e instituições que funcionam, isto é, estamos a pensar em galinhas que ponham mais ovos. Em vez de procurar alimentar a nossa ave ideal, a águia de Zeus, o cisne de Avon, ou seja o que for, falamos integralmente em termos processuais e embriogenéticos. O processo em si, separado do seu objectivo divino, torna-se duvidoso e até mórbido; o veneno entra no embrião de tudo; as nossas políticas são ovos podres.
O idealismo consiste apenas em considerar tudo na sua realidade essencial. Idealismo significa tão somente que devemos considerar um atiçador, no que diz respeito a avivar as brasas e a fazer borralho, antes de considerar a sua adequação ao espancamento das esposas. Quanto ao ovo, devemos considerá-lo, primeiro, para a criação prática de galinhas; só depois decidiremos se é suficientemente mau para servir na política. Bem sei que a busca primária da teoria (ou seja a procura de uma finalidade) nos expõe à banal acusação de tocar lira enquanto Roma arde. Certa escola, representada por Lord Rosebery, procurou substituir os ideais morais ou sociais, que até então constituíram a base de toda a política, por uma conferência geral organizando completamente o sistema social, o que lhe mereceu a alcunha de “eficiência”. Não estou muito seguro da doutrina secreta desta seita na matéria em causa mas, tanto quanto consegui apurar, “eficiência” significa que temos de descobrir tudo acerca de uma máquina exceto aquilo para que ela serve. Daqui surgiu uma das mais singulares fantasias do nosso tempo: a de que, quando as coisas vão mal, é preciso um homem prático. Estaríamos bem mais perto da verdade se disséssemos que quando as coisas vão muito mal precisamos de um homem não-prático. Pelo menos, com certeza que precisamos de um teórico. Homem prático quer dizer o habituado à simples prática do dia-a-dia, à maneira como as coisas funcionam vulgarmente. Quando as coisas não andam, do que se precisa é de um pensador, o homem que tem uma doutrina pela qual as coisas correrão. É disparate tocar lira quando Roma arde, mas há toda a razão para que se estude hidráulica durante o incêndio.
É, portanto, necessário deitar fora o agnosticismo pessoal quotidiano e tentar rerum cognoscere causas. Se o seu avião está ligeiramente indisposto, um homem habilidoso pode repará-lo, mas se está gravemente doente o mais natural é que seja necessário desencantar de uma universidade ou de um laboratório um velho professor distraído, cabeça de matagal encanecido, para analisar o mal. Quanto pior for o estrago, mais cabelos brancos e mais distração do teórico serão necessários para solucionar o problema. Nalguns casos extremos, ninguém, a não ser o homem (provavelmente louco) que inventou a aeronave, poderá talvez dizer de que avaria se tratava.
“Eficiência”, evidentemente, é palavra fútil, pela mesma razão que são fúteis expressões como “homem forte”, “força de vontade” e “super-homem”; quer dizer: é fútil porque apenas concerne a ações depois de praticadas. Não tem filosofia para incidentes antes deles acontecerem. Não dá, pois, liberdade de escolher. Qualquer ato só é bem ou mal sucedido depois de realizado; ao iniciá-lo, o que tem de ser, em abstrato, é ou bom ou mau. É impossível apostar no vencedor, pois enquanto apostamos ainda o não é. Também não há combate ao lado do vencedor; combatemos para determinar de que lado ficará a vitória. Se tal operação foi bem sucedida foi por ser eficiente. Se um homem é assassinado, o assassino é eficiente. O sol dos trópicos é eficiente na produção de povos indolentes, da mesma forma que é eficiente o tirânico contra-mestre do Lancashire na formação de homens enérgicos. Maeterlinck é tão eficaz no encher de um homem com estranhos frêmitos espirituais, como os senhores Crosse & Blackwell em o empanturrar com doces de frutas. Lord Rosebery, como cético moderno que é, prefere provavelmente os frêmitos espirituais. Eu, como cristão ortodoxo, prefiro as compotas, mas qualquer das operações só é eficaz depois de efetuada e ineficiente antes de o ser. O homem que pensa muito em sucesso tem de ser o mais dorminhoco dos sentimentais por ter sempre de olhar para trás. Se apenas quer vitórias, terá de chegar sempre atrasado à batalha. Para o homem de ação, só o idealismo serve.
Precisar esse ideal é, de longe, assunto mais prático e urgente do que quaisquer planos ou propostas imediatas, na perturbação da Inglaterra atual. O caos existente é devido, precisamente, a uma espécie de esquecimento geral de tudo a que originalmente aspiravam os homens. Ninguém pede o que deseja; todos pedem o que fantasiam poder obter. Cedo o mundo esquecerá o que o homem pretendia primeiramente e o próprio homem depois de uma vida política bem sucedida e vigorosa, também o esquecerá. O conjunto é um motim extravagante de ótimos secundários, pandemônio de pis aller2. Ora esta espécie de condescendência não só impede qualquer consistência heróica, como também impede qualquer entendimento realmente prático. É impossível determinar-se o ponto médio entre dois pontos que não estão fixos. Podemos fazer um acordo entre dois litigantes que não conseguem ambos tudo o que pretendem; mas não se eles não nos disserem o que querem. O gerente dum restaurante ficaria muito mais satisfeito se cada freguês fizesse os seus pedidos delicadamente, quer se tratasse de íbis guisado ou de cozido de elefante, em vez de se sentar, de cabeça entre as mãos, mergulhado em cálculos aritméticos sobre a quantidade de comida que o edifício possa conter. Alguns de nós temos sofrido com certa espécie de senhoras que, pela sua perversa falta de egoísmo, dão muito mais trabalho do que as egoístas, quase reclamadoras do prato impopular e ansiosas pelo lugar pior da casa. Outros conheceram reuniões ou grupos de passeio cheios de ferventes abnegações alardeadas. Por muito mais ínfimas razões do que as de tais admiráveis mulheres, mantêm os nossos práticos da política a mesma confusão devido a idênticas dúvidas sobre as suas exigências reais. Nada é mais impeditivo de um acordo do que um rosário de pequenas capitulações. Por todos os lados nos desnorteiam políticos campeões da educação laica – que, no entanto, julgam inútil trabalhar para a conseguir; desejam a proibição total, mas sabem que a não pedirão; lamentam a obrigatoriedade do ensino, mas mantêm-na resignadamente; querem a propriedade para os rurais, mas votam por qualquer outra coisa. É este ofuscante e viscoso oportunismo que entrava tudo. Se os nossos estadistas fossem visionários, poder-se-ia fazer qualquer coisa de prático. Se pedíssemos qualquer coisa abstrata, talvez algo se obtivesse de concreto. Tal como as coisas estão, não só é impossível obter-se o desejado, como impossível é obter-se qualquer parte dele, porque ninguém o pode assinalar chãmente como se faz nos mapas. Aquela clareza e até rigorosa qualidade do velho regatear extinguiu-se totalmente. Esquecemo-nos de que a palavra “compromisso” contém, entre outros elementos, a rígida e sonora palavra “promessa”. Moderação não significa vacuidade; é termo tão preciso como perfeição. O ponto médio é tão fixo como os extremos. Se um pirata me obrigasse a passear na prancha, seria inútil propor-lhe, como solução de compromisso, que me deixasse andar apenas uma distância razoável sobre a dita tábua. É precisamente sobre qual fosse essa distância razoável que o pirata e eu não poderíamos pôr-nos de acordo. Há um requintado ponto de inflexão matemático depois do qual a prancha verga. O meu bom senso acaba justamente aí. Mas o ponto em si é tão rigoroso como um diagrama geométrico, tão abstrato como qualquer dogma teológico.
(1) Edmond Rostand, na peça Chantecler (1910) cujo protagonista é um galo (N. do T.).
(2) Em francês no original: «o pior possível», (N. do T.).