Por G. K. Chesterton
O heroísmo eterno dos subúrbios[1]
Tradução: Wendy Aelson Carvalho.
Eu já disse, e não convém ficar sempre repetindo, que o erro do Sr. Blatchford e da sua escola é seu ceticismo insuficiente. Devemos nos voltar aos Cristãos Primitivos nas questões realmente importantes.
Exemplo: fui honrado pelo Sr. Blatchford que, em God and My Neighbour, diz de mim: “O Sr. Chesterton, em defesa ao Cristianismo, disse que ‘ninguém pode negar que o Cristianismo cometeu crimes que provavelmente enojem os Céus’.” Isso eu disse e repito. Entretanto, ali eu dizia algo mais. Dizia que ninguém pode negar que a totalidade das grandes e eficazes instituições é igualmente criminosa.
E por que será que toda grande instituição foi criminosa? Não basta dizer que “o Cristianismo foi persecutório; abaixo o Cristianismo!”, muito menos que “um Confucionista roubou minha escova de cabelo; abaixo o Confucionismo.” Ambicionamos saber se a causa para o roubo da escova de cabelos é uma causa inerente ao homem enquanto confucionista ou se é uma causa inerente ao homem enquanto homem.
Claro que a razão para a tortura realizada pelo Cristão era uma razão inerente a qualquer hoste humana: manter fortemente suas crenças e tentar, sem quaisquer escrúpulos, fazê-las prevalecer. Qualquer um poderia ser inflexível no tocante a qualquer crença, tentando, sem qualquer escrúpulo, fazê-la prevalecer. Como afirmei, se apurarmos os fatos disponíveis, veremos que qualquer outro homem agiu e age assim desde a fundação do mundo.
O Sr. Blatchford abriu uma exceção ao Budismo, que nunca usou de perseguição política. Essa é – se já houve alguma – a exceção que prova a regra. Pois o Budismo não foi perseguidor porque nunca foi político; sempre desprezou a felicidade e a civilização materiais. Deste modo, o Budismo nunca teve uma Inquisição, justamente por nunca ter tido uma Imprensa, um Projeto de Reforma ou um jornal Clarion.
Agora, se o Sr. Blatchford pensa que o passado sangrento de uma instituição é critério para sua condenação e se ele quer, mesmo, uma religião mais antiga, sangrenta e maior para condenar, temos algo constrangedor.
A instituição conhecida como Governo ou Estado, possui um passado mais vergonhoso que um navio pirata. Todos os códigos de Direito na terra foram cheios de erros aflitivos e cruéis. O suplício e a estaca não foram inventados pelos Cristãos; os Cristãos apenas reutilizaram o jogo das aterrorizantes ferramentas criadas pelo Paganismo. A estaca e a tortura são obra de um Racionalismo atroz que precede qualquer religião; são obra da Sociedade, do Ideal Social, do Socialismo ou, simplificando, do Estado que consiste na coisa mesma a que o Sr. Blatchford e seu seguidor socialista tornariam mais forte do que jamais fora debaixo do sol. Que delicadeza estranha e formidável! Delicadeza esta que tem ligações com o Cristianismo não pelo massacre de São Bartolomeu, mas, antes, pela ambição de purificar o Mundo de uma coisa cuja ostensiva essência já fora demonstrada na tortura feita contra os escravos romanos na busca de confissões, como também nas sanções artísticas da China.
Não acho inadequada a estima do Sr. Blatchford pelo Estado; não creio, tampouco, que o passado sangrento do que quer que seja assegure sua impotência para salvar a humanidade. Por esse motivo, creio firmemente que o Cristianismo não está desqualificado para tanto. O Sr. Blatchford não está assim tão seguro, pois apela, claramente, ao maior dos pecadores para livrá-lo do menor deles.
Se ao menos ele utilizasse a pergunta adequada! Não é perguntar “por que o Cristianismo afirma-se benéfico, sendo assim tão maléfico?” A pergunta adequada é: “Por que será que todas as coisas dos homens se dizem tão boas, sendo tão ruins?” Qual será o motivo para o melhor dos ordenamentos jamais constituir uma garantia do fim da corrupção? Se ele nunca se questionar a respeito disso corajosamente, de fato não deixará para trás algumas superstições nem passará sozinho pela clássica inconsequência ateísta que, no fim das contas, acaba numa situação bem estranha, pois sua cética peregrinação cessará justamente onde começa o Cristianismo.
E este começa com a maldade da Inquisição, só que com o acréscimo das maldades dos Liberais ingleses, dos Tories, dos Socialistas e dos magistrados nativos. O Cristianismo começa com aquilo que transcorreu toda a história humana. Seu nome: Pecado ou Queda Humana.
Se eu algum dia quisesse ir mais longe, a lista dos crimes do Cristianismo elencados pelo Sr. Blatchford seria um arquivo valiosíssimo. No entanto, logo ele verá que os pecados do Cristianismo histórico surgiram muito antes que este se produzisse, como uma grande torre. É uma Torre de Babel a desafiar as estrelas, erguendo-se a si mesma céu adentro, afrontando Deus no Céu. Deixemo-lo escalar por alguns anos. Quando ele estiver vizinho ao formidável topo da torre, perceberá que é apenas uma das novecentas e noventa e nove colunas que suportam o pedestal da antiga Filosofia Cristã.
Certo ou errado, o Cristianismo possui diagnóstico e medicamento para os males do mundo. E qual seria o medicamento do Sr. Blatchford? Diante dele também se encontra a imensidão da loucura e da futilidade humanas. Qual o remédio? Não estou fazendo (como um desconhecedor dos fatos poderia imaginar) uma piada estúpida; estou a dizer a mais pura verdade desta situação, quando digo que o remédio do Sr. Blatchford, pra todos estes males, é o de ninguém dever ser responsabilizado por nada.
Talvez nunca, na história humana, uma séria doença tenha tido uma cura mais assombrosa. Pois o Sr. Blatchford, lembremos, tem isso como uma cura. Muitos admitiram o Fatalismo como uma melancólica verdade metafísica. Ninguém antes dele, até onde eu sei, já rufou os tambores para anunciá-lo com o alegre significado de um desenvolvimento moral. O problema é que ele faz os homens deixarem de viver de acordo com ideais. É um problema que enquanto Marco Aurélio parte o coração pela razão, Cômodo, seu próprio filho, só liga para pantomimas sanguinárias e o remédio é dizer a Cômodo que ele não tem jeito; outro problema é que a castidade de São Francisco não pode prevenir a corrupção do Irmão Elias e seu remédio é dizer ao Irmão Elias que ele não será acusado, nem São Francisco admirado; e para o problema de um homem que freqüentemente escolherá do bel-prazer mais do que de árdua generosidade o remédio é dizer a ele que dentre estes itens o escolhido foi o bel-prazer.
Sei muito bem, é claro, que o Sr. Blatchford tentou fazer desta monstruosa anarquia algo mais tolerável ao intelecto. Fez isso ao dizer que embora as pessoas não devessem ser responsáveis pelos próprios atos, ainda assim devem ser treinadas para agir melhor. Elas deveriam, diz ele, ser dadas a melhores condições de desenvolvimento e hereditariedade e só então seriam boas, tendo assim o problema resolvido. A resposta básica é também óbvia. Como alguém poderia dizer que um homem não deve ser enquadrado como responsável, mas que deveria ser bem treinado? Pois para “dever” ser bem treinado, deve existir alguém que “deva” treiná-lo, que, por sua vez, “deve ser” responsável pelo treinamento. A proposição trucidou a si mesma em três frases. O Sr. Blatchford não aboliu a necessária responsabilidade só em dizer que, ao invés de ser tratada por carrascos, deve então ser atendida por médicos. Pois, no todo, supondo que eu precisasse dos serviços deles, acho que eu me apressaria mais a ser atendido pelo irresponsável carrasco do que pelo irresponsável médico.
Outra coisa: o Sr. Blatchford nem de longe nos apresenta algo que seja parecido com um argumento evidenciando que ele ou qualquer outro saibam quais sejam as condições que possam produzir homens bons. Não é possível que ele queira dizer que meras condições de conforto físico e de inteligência o façam; pois está claro que isso jamais ocorre. Talvez o Sr. Blatchford tenha alguma fórmula secreta para o exercício da virtude, qual seja fazer as pessoas morarem em árvores ou degolar-lhes ou engolir um tipo específico de pastilha no jantar; não disse a ninguém o que é.
O fato é muito simples. Pode até ser que perfeitas condições construam homens perfeitos. Mas mais verdade é que apenas homens perfeitos inventariam perfeitas condições. Se tornamos a nossa vida uma bagunça, como podemos estar acertados sobre qual seria o melhor solo para cultivar tais coisas? Se a hereditariedade e o ambiente contribuem para que cometamos o roubo e o adultério, por que não contribuiriam também para que as perfeitas condições por nós criadas levassem ao roubo e ao adultério? Nas Ilhas Britânicas existem, imagino, pessoas em cada grau concebível de riqueza e pobreza, da mais desatinada opulência até a mais desatinada miséria. Seria alguma dessas classes, tácita ou ostensivamente, melhor em relação às outras do ponto de vista moral? E onde muitos tipos de educação falham, com que direito o Sr. Blatchford supõe que qualquer deles seria infalível?
Quanto à grande parte do discurso do Sr. Blatchford sobre o pecado, vê-se que resulta dos ambientes vis e imundos e eu não quero introduzir nesta discussão qualquer emoção pessoal, mas sou obrigado a dizer que tenho uma dificuldade enorme de suportar aquele discurso pacientemente. Quem neste mundo fala como se a vilania e a insensatez só causassem dano na desgraça? É o Sr. Blatchford quem reincide na velha e desprezível impertinência de expor virtude no que é de classe alta, como um cartão de visita ou um chapéu de seda? É o Nunquam[2] quem nega o heroísmo eterno dos subúrbios? A coisa é quase incrível, mas isto também. Nunquam pôs como cumeeira de seu Templo esta associação entre vício e pobreza; a mais vil, mais antiga e mais suja de todas as cumeeiras que a insolência já atirou contra o pobre.
O homem nascido de mulher tem vida efêmera e é cheio de problemas; e o tenho como um ser mais nobre e feliz do que ao saber disso. Não farei a bondade de responder ao Sr. Blatchford quando questiona “como” um homem que nasce na sarjeta e na imundície pode viver uma vida nobre. Conheço muitos que o fazem – onde uma pedra lançada da minha casa facilmente alcançaria – de uma maneira que pouco importa. O homem sempre teve algo em si que não é passível da conquista das condições. Sim, existe uma liberdade que nunca esteve aprisionada. Existe uma liberdade que fez felizes homens em cavernas, assim como faz felizes homens em subúrbios. Trata-se da liberdade da mente, quero dizer, da única liberdade contra a qual o Sr. Blatchford faz guerra. Aquela que todos os tiranos ignoraram e que ele extinguiria; justo aquela que nenhum carcereiro negou a qualquer prisioneiro; é esta a que o Nunquam negaria. Mais numerosos e incontáveis homens (em todas as guerras e perseguições do mundo) observaram o lado de fora de suas pequenas e agradáveis janelas e disseram: “ao menos os meus pensamentos são livres.” “Não, não,” diz o rosto do Sr. Blatchford, aparecendo na janela, “seus pensamentos são tão materiais quanto suas cavernas; são tão mecânicos quanto uma guilhotina.” Então suspira este estranho consolador, de célula para célula.
Creio que o Sr. Blatchford diria que em sua Utopia ninguém estaria na prisão. Mas que importância tem eu estar ou não na prisão, se tenho que arrastar correntes para todo lugar.[3] Um homem em sua Utopia pode ter, por tudo que sei, comida grátis, pastos abertos, seu próprio estado, e seu próprio palácio. De quê isso vale? Ele não pode ter a própria alma.[4] Cada pensamento que lhe vem à mente deve ser tido como um clique numa máquina. Ele vê uma criança perdida e, num espasmo de dó, decide adotá-la. Clique! Ele deve lembrar que ele de modo nenhum fez aquilo realmente. Ele se vê tentado a realizar um grande pecado irresistível; então lembra a si mesmo que ele é um homem, e que pode, se preferir, ser um herói; então ele resiste. Clique! Ele lembra que ele não é um homem, nem um herói, mas uma máquina, assim feito para produzir aquele resultado. Ele caminha em largos campos sob uma esplêndida alvorada, então decide ter grande magnanimidade – Clique! O que há de bom nas auroras e nos palácios? Alguma escravidão já foi como esta? O homem já foi tão escravo assim?
Sei que isto nunca acontecerá; que a filosofia do Sr. Blatchford nunca será tolerada pelos homens sãos. Mas se isso acontecer já antecipo o que lhe sobrevirá. O homem, já uma máquina, levantar-se-á nos campos floreados e altamente bradará: “Nunca houve algo, uma igreja, que nos ensinasse que éramos livres em nossas almas? Será que não cercaria a si mesma de torturas e masmorras a fim de forçar os homens a acreditar que suas almas eram livres? Se sim, deixe isso retornar; torturas, cavernas e tudo o mais. Me ponha naquelas cavernas, atormente-me com aquelas torturas, se com isso eu vier a acreditar naquilo de novo.”
[1] Texto traduzido de “The Blatchford Controversies” (4º art.), “The Collected Works of G. K. Chesterton”, vol I., San Francisco: Ignatius Press, 1986, p. 390. (N. do T.)
[2] Ao que parece, “Nunquam” é um pseudônimo utilizado por Robert Blatchford quando da publicação do livro “God and my Neighbour”. (N. do T.)
[3] Aparente alusão ao Conto de Natal, de Charles Dickens, no qual os fantasmas das pessoas más arrastam, para onde quer que vão, enormes correntes. (N. do T.)
[4] Chesterton, ao que parece, alude ao evangelho segundo São Marcos, cap. VIII, v. XXXVI. (N. do T.)