NESTES NOSSOS DIAS de psicologia-infantil ninguém presta atenção à psicologia real da criança. Tudo o que parece importar é a psicologia do psicólogo, e a teoria ou linha de raciocínio particular que está a ser defendida contra psicólogos outros. O grosso do que por aí corre como arte e literatura manufaturadas, com magnificência e pompa, para as crianças, nem mesmo tenta agradar as crianças. Dificilmente o artista haveria de condescender em fazer um bebê rir se mais ninguém risse, ou mesmo o ouvisse. Essas coisas não são feitas para agradar as crianças. Na melhor das hipóteses, são feitas para agradar quem ama as crianças. Na pior, são experimentos em métodos educacionais científicos. Versos belos, sábios e perspicazes como aqueles de Stevenson em “Child’s Garden of Verses” haverão de permanecer sempre uma fonte pura e vivaz de prazer — para os adultos. Mas a idéia que muita vez anima-lhes as linhas não apenas é invisível à criança como lhe deveria ser escondida, caso ela fosse capaz de vê-la:
Se não é limpinha e nem arrumada a criança,
Com muito brinquedo e comida para encher a pança,
Criança travessa é, pode ter certeza,
Ou seu papai dinheiro não põe à mesa.
*The child that is not clean and neat,/With lots of toys and things to eat,/He is a naughty child, I’m sure,/Or else his dear papa is poor.
Com o abismo aterrador que há neste último verso criança alguma deveria atinar. Criança alguma seria capaz de entender, a não ser que fosse uma esnobe, uma reformadora social ou coisa que de tão hedionda o valha, a ironia daquela alusão às desigualdades e às iniquidades com as quais este mundo mau desde muito insulta a sagrada dignidade da paternidade. A criança que pudesse realmente sorrir com o verso seria capaz de sentar-se imediatamente para escrever um romance à la Gissing, e depois enforcar-se num dos pés da cama. Mas nem Stevenson, nem qualquer stevensoniano (e eu, de minha parte, digo ser um bom stevensoniano) jamais sonhou em esperar que o poema fizesse alguma criança sorrir. Fazia o poeta sorrir com a criança, coisa completamente diversa, conquanto possivelmente tão bela quanto, ao seu próprio modo. Eis aí a característica de toda esta nova literatura infantil. Tem por fim, legítimo e mesmo honroso, ensinar o adulto a apreciar os bebês. É coisa excelente ensinar aos homens e às mulheres como apreciar as crianças, mas nada tem a ver com dar prazer às crianças.
Ora, as antigas cantigas queriam, e explicitamente, dar prazer às crianças. Havia, não raro, em muito verso infantil, elementos poéticos genuínos; mas os versos não queriam ser poéticos. Queriam apenas ser prazerosos. Neste sentido, “Hey Diddle Diddle” é muito mais do que um idílio. É uma obra-prima da psicologia, modelo educacional clássico e perfeito. Ao bebê soam-lhe como música o ritmo e a melodia e dali para uma dança falta quase nada. As suas imagens são precisamente o que se quer para os primeiros movimentos da imaginação, quando a tatear na incongruidade, pois está repleta de objetos familiares nas mais fantásticas conjunções. A criança sabe o que é uma vaca e sabe o que é a lua. Mas a noção daquela pulando por cima desta lhe é provavelmente nova e, no sentido mais nobre da palavra, absurda.* Cachorros e gatos e pratos e garfos são-lhe as companhias e mesmo amigos do dia-a-dia, mas lhe é uma alegre surpresa pensar neles saindo para um feriado tão singular. Ela não aprenderia nada, pura e simplesmente, com todas as nossas tentativas de encontrar uma delicada matiz de humor na economia política do papai pobre, mesmo se o papai pobre estivesse ocupado, romanticamente, não em pular por sobre a lua, mas ao menos em mirar nela.*
*Nonsensical, no original.
*Shooting it [the moon], no original. Provável é que Chesterton estefa fazendo uma alusão à frase motivacional (sim, já andava em voga ali a auto-ajuda), repetida aos quatro ventos, de Norman Vincent Peale: “Shoot for the moon. Even if you miss it, you’ll land among the stars.” (Mire a lua. Mesmo se errar o alvo, você cairá entre as estrelas.)
Por óbvio, há, em “Hey Diddle Diddle“, muito mais. A vaca a pular por sobre a lua é imagem que, além de perfeitamente apropriada às crianças, pode muito bem servir de tema aos poetas. A aventura lunar a alguns pode soar uma aventura lunática, mas à sua roda a imaginação do homem sempre girou, e especialmente a imaginação de figuras românticas como Ariosto e Cyrano de Bergerac. A idéia de que o gado possa voar já recebeu tratamentos os mais sublimes. O boi alado anda, como se a fazer tremer o globo, não apenas entre as ruínas das esculturas assírias, mas, também, nos céus, flamejado e sobre rodas, como o símbolo apocalíptico de São Lucas. Àquilo que combina imaginações tão instintivas e antigas numa fantasia tão simples e clara certamente não falta a matéria-prima da poesia. E a idéia geral — algo como uma Saturnália cósmica ou sazão em que tudo pode acontecer — é, ela mesma, noção que tem assombrado a humanidade sob uma centena de formas, algumas delas apuradíssimas artisticamente.
Seria fácil justificar outras tantas e quantas cantigas infantis, na mesma linha de uma crítica de arte mais rigorosa e acurada. Se me fosse solicitado citar quatro linhas que bastassem para ilustrar o que tem sido chamado de a razão imaginativa, quando se eleva e quase chega a tocar a irracionalidade não imaginativa (pois este ponto de contato é a poesia), contentar-me-ia com citar quatro linhas de um meu livro de imagens da infância:
O homem no deserto me veio perguntar,
Quantas framboesas dão no mar?
Eu lhe respondi, como não sou besta;
“Tantos quantos arenques vermelhos dão na floresta.”*
*The man in the wilderness asked of me,/How many strawberries grow in the sea?/I answered him, as I thought good;/”As many red herrings as grow in the wood.”
Aí, tudo é poético; desde a figura sobrenatural e algo sinistra do homem do deserto, com as suas charadas misteriosas, à síntese perfeita da lógica e da visão que faz surgir imagens belíssimas no ato mesmo de prová-las impossíveis. Mas, repito: a qualidade artística, conquanto presente não é primária; o primário é divertir as crianças. E não estamos a divertir as crianças; estamos a divertir nós mesmos com as crianças.
Nossos pais, que acrescentavam um toque de beleza a todas as coisas práticas, introduziram figuras fantásticas primorosas e ritmos dançantes e saltitantes — a que mesmo os adultos poderiam admirar — no que tinha por fim primário e prático divertir as crianças. Mas nem sempre o faziam e nunca as faziam com isso em mente. O que sempre faziam era a diversão apropriada aos pequeninos; e o que nunca faziam era transformá-la em ironias que só um adulto pudesse entender. Uma cantiga infantil era algo como uma mesa infantil ou um armário infantil — coisa construída para um propósito humano particular. Sabiam o que queriam; conseguiam o que queriam. Escreviam absurdos e se davam ao trabalho de fazê-los absurdos completos.
Pois há dois modos de se lidar com o absurdo neste mundo. Um deles é colocar o absurdo no lugar certo; quando como as pessoas o colocam em versos infantis. O outro, é colocar o absurdo no lugar errado; como quando o colocam em teorias educacionais, críticas psicológicas e imprecações contra as cantigas infantis e outras diversões naturais da humanidade.