Gilbert Keith Chesterton (*1874/+1936)
O País de Pernas para o Ar,
Capítulo do livro Tremendas Trivialidades, publicado pela Editora Ecclesiae.
Tradução de Mateus Leme.
Semana passada, em uma metáfora despretensiosa, tomei o balanço das árvores e a secreta energia do vento como um típico exemplo do mundo visível movendo-se sob a violência do invisível. Usei essa metáfora simplesmente porque estava escrevendo o artigo num bosque. Porém, agora que retornei a Fleet Street (1) (que me parece, confesso, muito melhor e mais poética do que todas as florestas selvagens do mundo), sou estranhamente perseguido por essa comparação acidental. Os vultos das pessoas parecem uma floresta, e suas almas o vento. Todas as personalidades humanas que me falam ou fazem sinais parecem ter essa característica fantástica da orla da floresta contra o céu. Aquele homem que fala comigo, o que é senão uma árvore articulada? Aquele motorista de caminhão que gesticula selvagemente para que eu saia do caminho, que é senão um feixe de galhos agitados por um vento espiritual, um objeto silvestre que posso continuar a contemplar com calma? Aquele policial que ergue a mão para avisar três ônibus do perigo que correm de encontrar-se com minha pessoa, que é senão um arbusto sacudido por um momento por aquela rajada de lei humana que é algo mais forte do que a anarquia? Gradualmente, essa impressão de floresta se esvai. Mas o absoluto contraste entre o visível e o invisível, essa profunda sensação de que a única crença essencial é a crença no invisível como contrário do visível, súbita e sensacionalmente é trazida de volta a minha mente. Exatamente no momento em que Fleet Street se torna mais familiar (isto é, mais desconcertante e esplendorosa), meus olhos caem sobre um cartaz de vívido violeta, em que posso ver escritas em grandes letras pretas estas palavras extraordinárias: “Balconistas de Lojas Deveriam Casar-se?”
Quando vi aquelas palavras o mundo todo poderia ter virado de cabeça para baixo. Os homens em Fleet Street poderiam estar andando com as mãos. A cruz de St. Paul (2) poderia estar pendurada no ar de cabeça para baixo. Pois percebo que realmente entrei em um país dos avessos; entrei no país em que os homens definitivamente acreditam que o balanço das árvores é o que provoca o vento. Isto é, acreditam que as circunstâncias materiais, não importa quão negras e distorcidas, são mais importantes que as realidades espirituais, não importa quão poderosas e puras. “Balconistas de Lojas Deveriam Casar-se?” Fico perplexo ao pensar o que alguns períodos e escolas da história da humanidade teriam concluído de tal questão. Os ascetas do Leste ou de alguns períodos da Igreja primitiva pensariam que a frase significa: “Não serão os balconistas de lojas tão santos, tão de outro mundo, que não cheguem sequer a sentir as emoções dos sexos?”. Mas suponho que não é isso que o cartaz roxo significa. Em algumas cidades pagãs, poderia significar: “Escravos tão vis como balconistas de lojas deveriam ter permissão de propagar sua raça abjeta?” Mas suponho que não é o que o cartaz roxo significa. Temo que devemos encarar toda a insanidade do que ele realmente significa. Quer realmente dizer que uma porção da raça humana está perguntando se as relações primárias dos dois sexos humanos são particularmente boas para as lojas modernas. A raça humana está perguntando se Adão e Eva são totalmente convenientes para Marshall & Snelgrove. (3) Se isso não é uma inversão das coisas não sei o que será. Perguntamo-nos se a instituição universal vai melhorar nossa (queira Deus) instituição temporária. No entanto, já vi muitas questões semelhantes. Por exemplo, soube de um homem que perguntava seriamente: “A Democracia ajuda o Império?”. O que é o mesmo que dizer: “A arte é favorável aos afrescos?”
Disse que há muitas questões assim por aí. Mas se o mundo chegar a sentir necessidade delas, posso sugerir uma grande quantidade precisamente do mesmo tipo, baseadas precisamente nos mesmos princípios.
“Os pés melhoram as botas?” – “O pão é melhor quando é comido?” – “Chapéus deveriam ter cabeças por dentro?” – “O povo estraga uma cidade?” – “As paredes arruínam o papel de paredes?” – “Deveriam as gravatas envolver pescoços?” – “As mãos machucam as bengalas?” – “A combustão destrói a lenha?” – “Será a limpeza boa para o sabão?” – “Pode o críquete realmente aperfeiçoar os tacos?” – “Devemos levar noivas com nossas alianças?” e uma centena de outras.
Nenhuma dessas questões difere em nada em teor ou valor intelectual daquela a que me referi no cartaz roxo, ou de qualquer uma das questões típicas formuladas por metade dos zelosos economistas de nossos tempos. Todas são dessa categoria; todas são matizadas com esse mesmo absurdo inicial. Não perguntam se os meios são adequados ao fim; todos perguntam (com profundo e penetrante ceticismo) se o fim é adequado aos meios. Não perguntam se a cauda convém ao cão. Perguntam se um cão é (pelos mais altos cânones artísticos) o apêndice mais ornamental que pode ser posto na extremidade de uma cauda. Enfim, ao invés de perguntar se nosso sistema moderno, nossas ruas, comércio, contratos, leis e instituições concretas são adequados à primitiva e permanente ideia de uma vida humana saudável, nunca admitem que essa vida humana saudável entre na discussão, exceto de forma súbita e acidental em momentos estranhos; e então apenas perguntam se ela é conveniente a nossas ruas e comércio. A perfeição pode ser atingível ou inatingível como fim. Pode ser ou não possível falar de imperfeição como caminho de perfeição. Mas certamente ultrapassa o tolerável falar de perfeição como caminho de imperfeição. A Nova Jerusalém pode ser uma realidade. Pode ser um sonho. Mas certamente é ultrajante dizer que a Nova Jerusalém é uma realidade na estrada para Birmingham.
Esta é a maior e ao mesmo tempo mais secreta das modernas tiranias do materialismo. Na teoria a coisa deveria ser bastante simples. Um ser humano realmente humano sempre colocaria as coisas espirituais em primeiro lugar. Uma estátua de Deus que anda e fala encontra-se em um determinado momento empregada como balconista de loja. Tem em si um poder de amor tremendo, uma promessa de paternidade, a sede de uma lealdade que unifique a vida, e no curso ordinário das coisas, pergunta-se: “Até onde as condições existentes dos que trabalham em lojas encaixam-se em meu evidente e épico destino nos assuntos de amor e casamento?” Mas aqui, como disse, entra o silencioso e esmagador poder do materialismo moderno. Previne que ele se rebele, como faria noutra situação. Ao falar permanentemente do ambiente e de coisas visíveis, ao falar permanentemente de economia e necessidade física, pintando e repintando uma figura perpétua de mecanismos de ferro e máquinas impiedosas, de trilhos de aço e torres de pedra, o materialismo moderno acaba por produzir essa tremenda impressão em que a verdade é dita de cabeça para baixo. No final o resultado é atingido. O homem não diz, como deveria, “Convém que homens casados suportem ser balconistas de lojas?” O homem diz: “Convém que os balconistas de lojas casem?” A imensa ilusão do materialismo triunfou. O escravo não diz “Serão estas correntes dignas de mim?”. Diz, científica e resignadamente, “Serei eu digno destas correntes?”
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1. Rua na região central de Londres, continuação da Strand, onde se concentrou por muito tempo a imprensa britânica. (N do T)
2. A Catedral de St. Paul, maior templo anglicano do mundo, fica próxima à Fleet Street. (N do T)
3. Famosa loja londrina de roupas de alto padrão, fundada em 1848 e comprada em 1919 por outra loja chamada Debenhams. (N do T)