G. K. Chesterton
Tradução: Mateus Leme
Capítulo 11 do livro Tremendas Trivialidades, 2012, editora Ecclesiae

Estou sentado sob árvores altas, com uma forte ventania varrendo suas copas como se fossem ondas, de tal forma que seu carregamento vivo de folhas balança e ruge com algo que é ao mesmo tempo exultação e agonia. Sinto-me, de fato, como se estivesse realmente sentado no fundo do mar entre meras âncoras e cordas, enquanto sobre a minha cabeça e a penumbra verde da água soassem o eterno fragor das ondas e as dificuldades e colisões e naufrágios de navios tremendos. O vento puxa as árvores como se pudesse arrancá-las da terra com raiz e tudo como tufos de grama. Ou, para tentar usar ainda outra desesperada figura de linguagem para essa energia indescritível, as árvores estão repuxando e rasgando e açoitando o ar como se fossem uma tribo de dragões amarrados pelas caudas.
Enquanto olho estes gigantes cabeçudos torturados por um violento e invisível feitiço, uma frase volta à minha mente. Lembro-me de um menininho meu conhecido que estava uma vez andandoem Battersea Parksob um céu tão tormentoso e árvores tão agitadas quanto hoje. Ele não gostava nem um pouco do vento: soprava demais em sua face; fazia-o fechar os olhos; e arrancava seu chapéu, do qual tinha muito orgulho. Tinha, se me lembro bem, quatro anos. Após reclamar repetidamente da instabilidade atmosférica, disse enfim para sua mãe: “Bem, por que você não manda as árvores embora, e faz parar de ventar?”
Nada poderia ser mais inteligente ou natural que esse engano. Qualquer um que olhasse as árvores pela primeira vez poderia imaginar que eram na verdade vastos e titânicos leques, que por seu simples balanço agitavam o ar por milhas ao seu redor. Nada, penso eu, poderia ser mais humano e desculpável do que a crença de que são as árvores que causam o vento. Com efeito, é tão humana e desculpável que é, na prática, a crença de aproximadamente noventa e nove de cada cem filósofos, reformadores, sociólogos e políticos da grande época em que vivemos. Meu pequeno amigo era, de fato, muito semelhante aos principais pensadores modernos; só que muito mais simpático.
No pequeno apólogo ou parábola que ele teve assim a honra de inventar, as árvores representam todas as coisas visíveis e o vento as invisíveis. O vento é o espírito que sopra onde quer[1]; as árvores são as coisas materiais do mundo que são sopradas para onde o espírito quer. O vento é filosofia, religião, revolução; as árvores são as cidades e civilizações. Só sabemos que há vento porque as árvores nalguma montanha distante repentinamente enlouquecem. Só sabemos que há uma revolução real porque todos os topos de chaminé enlouquecem em todo o horizonte da cidade.
Assim como a silhueta irregular de uma árvore torna-se subitamente ainda mais irregular e ergue-se em cristas fantásticas ou caudas esfarrapadas, a cidade humana ergue-se sob o vento do espírito em templos periclitantes ou súbitas espirais. Ninguém já viu uma revolução. Multidões invadindo palácios, sangue escorrendo pelas sarjetas, a guilhotina erguida mais alta do que o trono, uma prisão em ruínas, uma população em armas – estas coisas não são a revolução, mas os resultados da revolução.
Você não pode ver o vento; pode apenas ver que há vento. Assim, também, não se pode ver uma revolução; pode-se apenas ver que há uma revolução. E nunca houve na história do mundo uma revolução real, brutalmente ativa e decisiva, que não fosse precedida por inquietude e novos dogmas no reino das coisas invisíveis. Todas as revoluções começaram sendo abstratas. A maioria começou de forma pedantemente abstrata.
O vento já está sobre o mundo antes que um pequeno ramo de árvore de mova. Assim deve haver sempre uma batalha no céu antes que haja uma batalha na terra. Uma vez que é adequado rezar pela vinda do reino, também o é rezar pela vinda da revolução que restaurará o reino. É correto esperar ouvir o vento dos Céus nas árvores. É correto rezar “Seja feita a vossa ira assim na terra como no Céu”.
O grande dogma humano é, assim, que o vento move as árvores. A grande heresia humana é que as árvores movem o vento. Quando as pessoas começam a dizer que as circunstâncias materiais criaram por si sós as circunstâncias morais, previnem qualquer possibilidade de mudança séria. Pois se minhas circunstâncias me fizeram completamente estúpido, como posso estar certo sequer de que tenho o direito de alterá-las?
O homem que representa todos os pensamentos como um acidente do ambiente está simplesmente esmagando e desacreditando todas as suas próprias idéias – inclusive aquela. Tratar a mente humana como tendo uma autoridade insuperável é necessário a todo o tipo de pensamento, até mesmo o dos livres pensadores[2]. E nada nunca será reformado nesta época ou neste país a menos que compreendamos que o fato moral vem primeiro.
Por exemplo, a maioria de nós, suponho, viu na imprensa e ouviu em clubes de debates uma interminável discussão que persiste entre socialistas e abstêmios totais. Estes dizem que a bebida leva à pobreza; aqueles que a pobreza leva à bebida. Só posso admirar-me de que qualquer dos lados se contente com explicações físicas tão simples. Certamente é óbvio que a coisa que leva o proletariado inglês à pobreza é a mesma que leva à bebida: a ausência de uma dignidade cívica forte, a ausência de um instinto que resista à degradação.
Quando você descobrir por que enormes propriedades rurais inglesas não foram há muito tempo recortadas em pequenas fazendas como na França, terá descoberto por que o inglês é mais bêbado que o francês. O inglês, entre seus milhões de adoráveis virtudes, de fato tem essa qualidade, que pode ser estritamente chamada “mão na boca”, porque sob sua influência a mão de um homem automaticamente busca sua própria boca, ao invés de buscar (como às vezes deveria) o nariz de seu opressor. E um homem que diga que a desigualdade inglesa na posse de terra deve-se apenas a causas econômicas, ou que a embriaguez inglesa deva-se apenas a causas econômicas, diz algo tão absurdo que não pode realmente ter pensado no que disse.
Mesmo assim coisas tão ridículas como essa são ditas e escritas sob a influência daquela grande lente de impotência infantil: a teoria econômica da história. Há pessoas que protestam que todos os grandes motivos históricos foram econômicos, e depois têm que gritar a plenos pulmões para induzir a democracia moderna a atuar por motivos econômicos. Os políticos marxistas radicais da Inglaterra apresentam-se como uma pequena e heroica minoria, que tenta em vão induzir o mundo a fazer o que, de acordo com sua teoria, o mundo sempre faz. A verdade é, evidentemente, que haverá uma revolução social no momento em que a coisa deixar de ser puramente econômica. Nunca se pode ter uma revolução para estabelecer uma democracia. Tem de haver uma democracia para haver uma revolução.
Levantei-me de sob as árvores, pois o vento e a leve chuva haviam cessado. Elas erguem-se como pilares dourados na clara luz do sol. Seu balançar e o vento terminaram simultaneamente. Assim, suponho que ainda haja filósofos modernos que sustentem que são as árvores que causam o vento.
[1] Referência ao Evangelho de S. João, 3,8. (N do T)
[2] Livre Pensar foi um movimento surgido em meados do século XVIII cuja meta era desenvolver o raciocínio liberto e em contraposição a qualquer influência de ideias preconcebidas e quaisquer elementos dogmáticos (N do T)