No momento você está vendo Os Três Inimigos da Família

Os Três Inimigos da Família

Foi decerto por meio de uma ironia brilhante como um relâmpago que o sr. Aldous Huxley iluminou todo o panorama patético e desprezível de sua Utopia satírica — com a sua  humanidade sintética, feita de homens e mulheres fabricados — com a velha citação romântica do “Admirável Mundo Novo.” A citação vem, como se bem sabe, daquele momento supremo da mágica da juventude, acalentada pela mágica da velhice, quando Miranda a maravilhosa torna-se, ante o primeiro amor, Miranda a maravilhar-se. Usá-la como o lema mesmo de um sistema que, tendo perdido toda a inocência, necessariamente haveria de perder todo o maravilhar-se, foi um toque de sagácia avassaladora. E, contudo, mal não fará lembrar que, quando comparado com outros mundos, em que se faz a mesma obra com menos vigor se bem que com a mesma perversidade, a Utopia dos extremistas tem com efeito algo daquela integridade intelectual própria aos extremos, e mesmo aos extremos da loucura. Neste sentido, os dois adjetivos irônicos não são apenas irônicos. O humano horrendo, ou inumano, descrito pelo sr. Huxley em seu romance, vive por certo em um mundo vil; em um mundo desprezível e fundamentalmente infeliz. Mas o mundo vil é, também, num sentido, novo; e é num sentido valente¹. Haveria que se ter ao menos certo punhado de valentia, além de outro tanto de brutalidade, se se quisesse estabelecer algo assim no mundo dos fatos. Haveria que se ter alguma coragem, e mesmo algum auto-sacrifício, a fim de se estabelecer algo tão completamente repugnante.

¹ O título do livro, no original inglês, é “Brave New World”. Isto é dizer: “Valente Mundo Novo”. 

Mas se está a obrar o mesmo noutros mundos que não são particularmente novos, e tampouco valentes. Há pessoas de um outro tipo, muito mais comum e convencional, que, não contentes com tentar criar um tal paraíso de covardia, tentam criá-lo por meio de uma conspiração de covardes. A atitude que têm para com a Família e a tradição de suas virtudes cristãs é a atitude de homens dispostos a ferir mas não a golpear; ou a enfraquecer e minar conquanto não se lhes peça para abrir fogo ou lutar em campo aberto. E estes são mais da metade, ou quase dois terços, dos que escrevem nos jornais mais respeitáveis e capitalistas. Que se diga, mais uma vez: o que destruiu a Família no mundo moderno foi o capitalismo. Sem dúvida, poderia ter sido o comunismo, se o comunismo algum dia houvesse tido uma chance fora daquele deserto semi-mongol onde de fato floresce. Mas, na medida em que é de nós que se está a falar, o que desfez lares e encorajou divórcios, o que tratou as antigas virtudes domésticas com desprezo cada vez maior e mais à vista, é a época e o poder do capitalismo. Foi o capitalismo que forçou uma contenda moral e uma competição comercial entre os sexos; que destruiu a influência dos pais em favor da influência do patrão; que arrastou os homens para fora de suas casas a fim de que procurassem emprego; que os fez viverem perto de suas fábricas e firmas em vez de perto de suas famílias; e, acima de tudo, que encorajou, por razões comerciais, um desfile de publicidade e novidades espalhafatosas que são, por sua própria natureza, a morte de tudo a que nossos pais e mães chamavam dignidade e modéstia. Quem deitou abaixo e pisoteou, como um bárbaro, a antiga estátua romana de Verecundia,² não foi o bolchevique; foram o chefe, o publicitário, o vendedor e o propagandista. Mas como quem faz a coisa são tais homens, por óbvio é que a fazem ao seu modo encobertado e confuso; por meio de todos os truques irresponsáveis de suas sugestões abomináveis e de sua psicologia imunda. Fazem-na, por exemplo, por meio da ridicularização perpétua das antigas virtudes e limitações vitorianas que, não estando mais aqui, dificilmente poderão dar-lhes resposta. Fazem-na mais por imagens do que por palavras impressas; pois às palavras há que se dar algum sentido, e pode-se responsabilizar um homem por havê-las impresso. Alardeiam-se efígies hirtas e horrendas de mulheres usando crinolinas e as toucas mais pavorosas, como se não pudesse ter havido mais nada para se ver quando Maud veio até o jardim e foi saudada por tal música. Felizmente, os amigos de Maud, que teriam desafiado o jornalista e o fotógrafo a um duelo, estão todos mortos; e estes ridicularizadores do vitorianismo fazem questão de só bater em cachorros mortos. Alguns de seus caricaturistas, ousadíssimos, chegaram mesmo a desenhar um galpão de banho como se ele fora uma metralhadora.

² Verecúndia (verecundia, -ae): vergonha, timidez, modéstia.

É coisa muito conveniente, pois, atacar os galpões de banho, já que não há galpões de banho a se atacar. Contrabalanceiam, então, tais coisas com fotografias da Garota Moderna em vários estágios do movimento nudista; e se fiam em que qualquer coisa tão obviamente vulgar por certo será popular. No mais, a Garota Moderna flutua num mar de sentimentalismo piegas; um tagarelar constante sobre a sua franqueza e viço, sobre a perfeita naturalidade de ela pintar o rosto ou a sua coragem sem precedentes por não ter filhos. Dilui-se o todo numa hipocrisia enfadonha sobre a camaradagem, mil vezes mais sentimentalista do que o velho sentimento. Quando eu vejo a família a se afogar nestes pântanos de pieguice amorfa e fútil, sinto ímpetos de dizer “Dêem-me os comunistas.” Antes ter as batalhas bolcheviques e o Admirável Mundo Novo a contemplar a antiga casa do homem ser carcomida, silenciosamente, pelos vermes da sensualidade secreta e do apetite individual. “O covarde o faz com um beijo; o valente, com uma espada.”

Mas há, curiosamente, ainda uma terceira coisa, que me parece ser ainda pior do que as outras duas. Não é o comunista a atacar a família ou o capitalista a traí-la; é a visão larga e espantosa do hitlerista a defender a família. A fim de defender a independência da família Hitler quer  tornar todas as famílias dependentes dele e de seu estado semi-socialista; a fim de preservar a autoridade dos pais Hitler haverá de dizer aos pais, autoritariamente, o que devem fazer. Manter a dignidade sagrada da vida doméstica é, para ele, despachar ordens peremptórias ao avô para que se levante às cinco da manhã e faça musculação, ou à avó, para que vá marchar dez quilômetros num campo à cata de uma bandeira da suástica. Noutras palavras, ele parece interferir na vida familiar ainda mais do que o faz o bolchevique; e fá-lo em nome da santidade da família. Conquanto não seja coisa muito mais encorajadora do que as outras duas manifestações é ao menos, mais divertida.

~ G. K. Chesterton: The Well and the Shallows