Reforma Social versus Controle de Natalidade

G. K. Chesterton

Tradução de Pedro Gontijo Menezes

Social Reform versus Birth Control [1]

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A verdadeira história do mundo está cheia dos mais estranhos casos de ideias que foram viradas de ponta-cabeça e se contradizem completamente. O exemplo mais recente é a ideia extraordinária de que o chamado “controle de natalidade” seria uma reforma social, a qual acompanha outras reformas sociais preferidas pelos progressistas.

É mais ou menos como dizer que cortar fora a cabeça do Rei Carlos era uma das modas cavalheirescas mais elegantes para penteados. É como afirmar que a decapitação é um avanço da odontologia. Pode ser correto ou não decapitar o rei, pode ser certo ou errado cortar a própria cabeça quando se tem dor-de-dente. Porém, qualquer um pode ver que, ao simplificarmos as coisas cortando cabeças, não precisaremos mais de penteados, será desnecessário levar os mortos ao dentista ou fazer filantropia aos que não nasceram — aos que nunca vieram a ser. Não iremos prover sustento aos nossos descendentes dizendo que a destruição de nossos descendentes tornará desnecessário provê-los com qualquer coisa. Talvez esta destruição seja apenas no sentido de negação e se permita que alguns poucos descendentes sobrevivam.  No entanto, é óbvio que essa negação é um mero pessimismo, opondo-se à noção mais otimista de que algo pode ser feito para toda a família humana. Não é surpresa para nenhum ser pensante descobrir que isso foi exatamente o que aconteceu.

A história começou com Godwin [2], amigo de Shelley [3] e fundador de tantas esperanças sociais ditas revolucionárias. Independentemente da nossa opinião acerca dos detalhes de sua teoria, ele certamente inspirou os jovens mais generosos de seu tempo com a sede de justiça e igualdade social que inspiram o socialismo e outros ideais. E, o que é ainda mais gratificante, ele cobriu os velhos ricos de sua época com um terror tenso e imperioso. Cerca de três quartos do discurso dos Conservadores e dos Liberais daquele tempo consistiu em sofismas e desculpas inventadas para remendar um acordo corrupto da oligarquia contra os apelos por fraternidade e humanidade fundamentais, feitos por homens como Godwin e Shelley.

Malthus: Uma resposta a Godwin

Os velhos oligarcas usariam qualquer ferramenta contra os novos democratas, e certo dia tiveram a sorte funesta de utilizar uma ferramenta chamada Malthus [4]. Malthus escreveu uma resposta aberta e declarada a Godwin. Seu livro sombrio é unicamente destinado a responder Godwin. Onde quer que Godwin tentasse demonstrar que a humanidade pode ser mais feliz e mais humana, Malthus tentava provar que a humanidade nunca terá a possibilidade de ser feliz e mais humana. O argumento utilizado foi este: se os homens famintos fossem toleravelmente livres ou suficientemente prósperos, eles casariam e teriam vários filhos e não haveria comida para todos. A inferência era, evidentemente, que os deixasse morrer de fome. Maltuhs sustentou a questão sobre o aumento do número de filhos com uma fantástica fórmula matemática de progressão geométrica, e todo ser humano vivo pode ver claramente que tal fórmula é inaplicável a qualquer coisa viva. Nada que dependa do humano poderá seguir em progressão geométrica, e a população certamente não segue nada do tipo.

Porém, o ponto é que Malthus quis apresentar seu argumento como um argumento contra toda reforma social. Ele nunca pensou em usá-lo para outra coisa exceto para se opor a toda reforma social. Ninguém mais jamais pensou em usá-lo como qualquer coisa, naqueles dias de lógica, a não ser um argumento contra a reforma social. Malthus chegou a utilizá-lo contra o antigo hábito da caridade humana. Ele alertou as pessoas contra qualquer tipo de obra de caridade. Sua teoria sempre foi um balde de água fria em qualquer proposta de distribuir propriedade ou de melhorar o status do homem pobre. Esta é a nobre história do nascimento do Controle de Natalidade.

A única diferença entre aquele tempo e os dias de hoje é que os velhos capitalistas eram mais sinceros e científicos, enquanto os capitalistas modernos são mais hipócritas e obscuros. O homem rico de 1850 usou o argumento em teoria para oprimir os pobres. O homem rico de 1927 só vai usá-lo para oprimir os pobres na prática. Sendo incapaz de teorizar, incapaz de pensar, ele só fará duas coisas: uma, que ele chama de pragmatismo, ou outra, que chamo de sentimentalismo. Uma vez que ele não é um homem como Malthus, ele não suportará ser um pessimista, então se transformará em um sentimentalista. Ele mistura essa ideia crua e brutal (de que os pobres devem ser impedidos de procriar) com um monte de ideais e promessas sociais desleixadas e doentias, completamente incompatíveis com a primeira. Mas o capitalista é, de qualquer forma, um homem prático, e será tão brutal quanto seus antepassados ao partir para a prática. O resultado prático dessa coisa toda é muito claro: se ele pode evitar que seus empregados tenham famílias, ele não precisa sustentar essas famílias. Por que diabos precisaria?

Um Teste Simples

Se alguém duvida de que este é o único motivo para o argumento malthusiano, vamos testá-lo com as afirmações simples feitas por vários apoiadores do controle de natalidade na Inglaterra, como o deão da Catedral de São Paulo, em Londres. Eles nunca dizem que sofremos de uma oferta generosa de banqueiros, ou que financistas cosmopolitas não devem ter famílias grandes. Eles não dizem que a muvuca elitista e bem vestida em Ascot [5] precisa encolher, ou que é desejável reduzir em um décimo as pessoas que jantam no Ritz ou no Savoy. Embora, Deus o sabe, se existe algo humano que parece uma selva subumana, com flores tropicais e ervas altamente venenosas, é a multidão de ricos que se reúne em um hotel moderno e americanizado.

Os adeptos do controle de natalidade não têm o menor desejo de controlar essa selva. É uma selva muito perigosa para ser tocada. Ela abriga tigres. Eles nunca falam do perigo das classes confortáveis, nem mesmo da seção mais respeitável das classes confortáveis. O deão melancólico não está melancólico por haver muitos duques e nem, naturalmente, por haver muitos deões. Ele não está aborrecido com o político que possui toda uma população de favorecidos, embora ele tenha de arranjar cargos e salários públicos para todos esses favorecidos. Economia Política significa que todos devem ser econômicos, exceto os políticos.

O promotor do controle de natalidade não se preocupa com nenhuma dessas coisas pela razão pura e simples de que essas não são as pessoas que ele quer controlar. O que ele quer controlar é o povão, e quase declara isso abertamente. Ele sempre insiste que um trabalhador não tem o direito de ter tantos filhos, ou que um cortiço é perigoso porque produz muitos filhos. A pergunta que ele mais teme é: “Por que o trabalhador não tem um salário melhor? Por que a família do cortiço não tem uma casa melhor?” — ele escapa dessas perguntas sugerindo uma família menor ao invés de uma casa maior. O dono do imóvel e o patrão dizem com proximidade e compaixão: “Você não pode esperar que eu abra mão do meu dinheiro. Mas farei um sacrifício: vou abrir mão dos seus filhos”.

Uma dentre muitas

Enquanto o ataque malthusiano contra a esperança democrática tornava mais forte e rígida a resistência reacionária de reformar este país, outras forças já estavam em campo. Devo notar que Malthus e seu sofisma contra toda reforma social não estavam sozinhos. Ele foi uma no meio de todo um conjunto de desculpas científicas inventadas pelos ricos como razões para negar a justiça aos pobres, especialmente quando o velho glamour supersticioso dos reis e nobres esvaneceu-se no século dezenove. Uma delas era as Leis de Ferro de Economia Política: fingia que alguém, em algum lugar, havia provado com números em um quadro que a injustiça é incurável. Outra era uma massa brutal de devaneios sobre darwinismo e luta pela vida, na qual o diabo deve capturar o mais fraco. Na realidade, ela é uma luta por riqueza, na qual o diabo geralmente captura o mais forte. Todas essas desculpas tinham como característica a tentativa de distorcer a nova ferramenta da ciência para transformá-la em uma arma da velha tirania do dinheiro.

Tais forças, embora poderosas numa plutocracia industrial doente, não eram as únicas forças que haviam, nem mesmo no século dezenove. Ao final daquele século, havia outro movimento em marcha, em especial no continente europeu, notavelmente entre socialistas cristãos, os ditos democratas católicos, e outros. Não há espaço para descrevê-lo aqui; no entanto, o interessante é que ele é a inversão exata do argumento do malthusianismo e do controle de natalidade. Este movimento não se contentava com o teste do salário de sobrevivência: ele insistia particularmente no que preferia de chamar de salário familiar. Em outras palavras, ele defendia que nenhum salário é justo ou adequado se não contemplar e proteger o homem, considerado não apenas como indivíduo, mas como pai de uma família normal e razoavelmente numerosa. Um movimento desse tipo é o verdadeiro oposto do controle de natalidade e ambos provavelmente ganharão força até chegarem num tremendo choque de controvérsia. Divirto-me refletindo sobre esta grande batalha vindoura e lembrando que, quanto mais meus oponentes praticarem o controle de natalidade, existirão menos deles para lutar contra nós no futuro.

O conflito

Minha grande dificuldade é fazer com que meus oponentes, em meio à confusão mental que encobre esta questão, percebam o simples fato de que estas alegações são, antes de tudo, contrárias entre si. No início de toda essa discussão está o fato elementar de que limitar as famílias é a razão para limitar salários, e não para aumentá-los. Você pode gostar da limitação por outras razões, assim como pode ser contra a limitação, também por outras razões. Você pode arrastar a discussão para questões completamente diferentes como, por exemplo, se as mulheres são escravas nos lares comuns. Você pode ceder a um meio-termo em consideração ao empregador ou por outro motivo, comprometendo-se a tomar somente meio pão ou a ter meia família. Mas as alegações são fundamentalmente opostas. É toda a verdade naquela teoria de luta de classes sobre o qual os jornais dizem tanta besteira. O posicionamento do pobre é ter o que ele considera uma família grande. Se você reduzi-la para adequá-la aos salários, você faz uma concessão para conformar-se às condições capitalistas. Abordarei a aplicação prática mais adiante; neste momento, estou tratando da contradição lógica primária. Se ambos os métodos podem ser cumpridos, eles o serão de maneira a um contradizer e excluir o outro. Um não é necessário ao outro, pode dispensar ou destruir o outro. Se você pode aumentar os salários, não há necessidade de diminuir as famílias. Se você pode diminuir as famílias, não há necessidade de aumentar os salários. Alguém poderia julgar qual dos métodos o capitalista governante iria preferir; mas se ele utilizar um, não terá necessidade do outro.

Há, obviamente, muito mais a dizer sobre este assunto; resolvi lidar com somente um aspecto do controle de natalidade — sua origem extremamente desagradável. Eu disse que ele é puramente capitalista e reacionário, e acredito tê-lo provado totalmente. Existem, no entanto, muitos outros aspectos deste mal: ele é impuro à luz dos instintos; não é natural em relação à afeição; é uma tentativa de arrastar o povão para uma rotina de charlatanismo médico e pseudociência; mistura-se à ideia confusa de que as mulheres são livres quando servem a seus empregados, mas escravas quando ajudam seus maridos; ignora a existência de lares reais nos quais a prudência surge do acordo e da livre vontade. Estes e muitos outros aspectos seriam extraordinariamente interessantes de se discutir. Porém, para não ocupar muito espaço, tomarei o título como limite para o texto.

Um embuste

A própria expressão “controle de natalidade” é puro embuste. É um daqueles eufemismos descarados usados nas manchetes dos jornais. É como “reforma tributária”, ou “trabalho livre”. Ela é feita para não significar nada e pode significar qualquer coisa, de preferência algo totalmente diferente do que ela diz. Todo mundo acredita em controle de natalidade e quase todo mundo já exerceu algum controle sobre as condições do nascimento. As pessoas não se casam sonâmbulas, nem tem filhos enquanto dormem. Ao longo de eras imemoriais, em inúmeras nações, o controle de natalidade real e verdadeiro chama-se autocontrole. Se alguém diz que isso nunca funciona, eu digo que funciona. Em muitas classes sociais de vários países onde esse charlatanismo é desconhecido, populações inteiras de pessoas livres mantiveram-se dentro dos limites razoáveis de tradições sólidas de frugalidade e responsabilidade. Mas a coisa que os jornais capitalistas chamam de controle de natalidade não é controle nenhum. É a ideia de que as pessoas devem ser total e completamente descontroladas, contanto que possam escapar de tudo que seja positivo, criativo, inteligente e digno de pessoas livres. Trata-se de um nome dado à sucessão de expedientes diversos, pela qual seria possível surrupiar o prazer que vem com um processo natural enquanto se frustra o próprio processo de maneira violenta e antinatural.

Um dos paralelos mais próximos e respeitáveis seria o do epicurista romano, que tomava eméticos ao longo do dia para que pudesse comer cinco ou seis jantares nababescos todos os dias. Agora, qualquer pessoa de bom senso, livre da enganação dos jornais científicos e de palavras compridas, diria ao epicurista que, no longo prazo, uma rotina dessas faria mal para a digestão e quase certamente para seu caráter. Os homens têm, sozinhos, senso o bastante para saberem quando um hábito toma o gosto pela perversão e pelo perigo. Se fosse moda, nos ambientes elegantes, chamar esse expediente romano de “controle de dieta” e falar do assunto com ares superiores, dizendo que se trata da “melhoria da vida e do serviço à vida” (como se não significasse nada mais do que o domínio do homem sobre suas refeições), deveríamos tomar a liberdade de dizer que é tudo fanfarronice, sem qualquer relação com a realidade em questão.

O erro

O fato, imagino, é que eu me revolto contra as condições do capitalismo industriais, enquanto os defensores do controle de natalidade se revoltam contra as condições da vida humana. Quanto ao que eles querem dizer quando me acusam de instigar “uma guerra de classes contra as mães”, só posso especular. Se a intenção deles foi dizer que cometo o erro imperdoável de acreditar que as mães desejarão continuar sendo mães, então eles têm toda a razão. Duvido que as mães possam escapar da maternidade no socialismo. Os defensores do controle de natalidade, no entanto, parecem desejar que algumas delas escapem da maternidade no capitalismo. Eles demonstram simpatia com aquelas que preferem “o direito de ganhar a vida fora de casa”, ou (em outras palavras) o direito de serem escravas assalariadas e trabalharem para um total estranho porque, por acaso, é alguém mais rico. Nunca conseguirei compreender, nem em uma vida inteira, que contorcionismo intelectual inimaginável levou a considerar isso uma condição mais livre para a mulher do que viver com o homem que ela própria aceitou livremente. O único ponto que faz sentido para mim é que o trabalho proletário, embora obviamente mais senil e subordinado do que a paternidade, ainda é mais seguro e mais irresponsável porque não é parental. Posso facilmente acreditar que existem pessoas que preferem trabalhar numa fábrica ao invés de numa família, pois sempre há algumas pessoas que preferem escravidão à liberdade, serem governados no lugar de governar. Penso que sua disputa com a maternidade não é como a minha, uma disputa sobre condições desumanas, mas simplesmente uma disputa sobre a vida. Dada a chance de escaparem da natureza das coisas, chegaremos a uma situação do tipo “escola de creche para nossos filhos com outras mães e mulheres solteiras treinadas profissionalmente como funcionárias”.

Não adicionarei mais nada a essa imagem aterrorizante, a não ser especular, com certa satisfação, acerca do mundo no qual as mulheres não poderão cuidar dos próprios filhos, mas cuidarão dos filhos das outras. No entanto, penso que isto é um indício do abismo entre arranjos naturais e antinaturais, que deverá ser superado antes de tratarmos daquele que deveria ser o próprio tema da discussão.

Notas:

[1] Publicado no livro Chesterton Collected Works, Ignatius Press, datado de 1927.

[2] William Godwin, jornalista e filósofo político inglês, um dos pioneiros do utilitarismo e do anarquismo.

[3] Percy Bysshe Shelley, poeta do romantismo inglês, casou-se com a filha de Godwin, Mary, escritora famosa.

[4] Thomas Malthus, economista inglês famoso pela teoria sobre o descompasso entre o crescimento populacional e a oferta de recursos, que levaria inexoravelmente a uma crise de escassez.

[5] Famosa corrida de cavalos realizada na cidade de Ascot, frequentada pela família real e pela elite britânica e européia.

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