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Resenha – A Esfera e a Cruz

Por Diego Guilherme da Silva, Presidente da Sociedade Chesterton Brasil

O livro A Esfera e a Cruz, de Gilbert Keith Chesterton, começou a ser escrito em 1905 e foi publicado, de forma seriada, na revista Commonwealth; no entanto, por algum motivo que especialistas não sabem dizer qual, as publicações foram interrompidas e somente em 1910 a obra recebeu sua versão final.

Trata-se, poderíamos dizer, de uma aventura metafísica. O romance vai ao cerne de questões essenciais como Crença versus Descrença, Fé versus Ateísmo. É um livro, caro leitor, que nos causa grande deleite. Depois de lê-lo, você nunca mais será o mesmo. Se você tem dúvidas de Fé, saiba que corre um sério risco de perdê-las. Nas páginas seguintes, faremos um resumo da narrativa (fica aqui, portanto, o alerta de spoiller).

O romance começa com o monge Miguel e Lúcifer em uma nave voadora que sobrevoa Londres até parar sobre a Catedral de Saint Paul; ali, sobre o domo, há uma esfera e uma cruz —  ao longo da narrativa, os dois símbolos serão o motivo de discussões acaloradas. Lúcifer considera a esfera perfeita, assim como o racionalismo que defende, pois ela é compacta, fechada em si mesma, sem arrestas; Miguel, no entanto, considera a cruz com seu dois traços, vertical e horizontal, para o alto e para os lados, um paradoxo: um paradoxo que se expande e consegue abraçar todo o mundo, que é esférico. Recordemos que, não por acaso, a espada tem o formato da cruz empunhada pelo Arcanjo Miguel. 

Catedral Saint Paul fica localizada em Londres.  Em sua cúpula estão a Esfera e a Cruz, os símbolos da controvérsia filosófica-teológica de Chesterton.

“Acabei de dizer, Michael, que poderia provar a verdade da visão racionalista e a vigarice do cristianismo a partir de qualquer símbolo que você quisesse propor-me, mediante qualquer exemplo que aparecesse. Pois aqui temos um caso, o caso por excelência! O que poderia melhor expressar a sua filosofia e a minha que não o formato da cruz e o formato da esfera? O globo é razoável; a cruz não é razoável: é um animal de quatro patas com uma perna maior que as outras. A esfera é inevitável; a cruz é arbitrária. Acima de tudo, o globo está em união consigo mesmo; a cruz, em primeiro lugar e acima de tudo, é inimiga de si mesma. A cruz é o conflito de duas linhas, de duas linhas hostis em direções irreconciliáveis. Aquela coisa silenciosa ali em cima é, essencialmente, uma colisão, uma batida, uma luta em pedra.” (p. 50)

E Lucífer continua: “A cruz é um simples item bárbaro; a esfera é a perfeição. No melhor dos casos, a cruz é a amarga árvore da história humana; a esfera é o fruto final, redondo e maduro. E a fruta deve estar no alto da árvore, não em sua base.” (p. 51)

De forma sagaz, o sábio Monge Miguel responde que, se a esfera estivesse em cima da cruz, a forma redonda a faria cair. Em seguida, Lúcifer o joga sobre o domo da catedral. Lúcifer só voltará a aparecer no final da narrativa.

Por ser um romance no qual Chesterton expõe correntes filosóficas e teológicas, às vezes o narrador cria cenários para que personagens que encarnam tais características possam nascer. O livro é cheio de cenas belíssimas e surpreendentes. Numa dessas cenas, as personagens fogem em um barco e acreditam estar indo para a América, porém, pouco a pouco, percebem que estão na própria Inglaterra. Inclusive esta é uma das imagens que Chesterton utiliza no livro Ortodoxia para falar de sua jornada em busca da verdade. O mesmo recurso estético também é usado no conto “Homesick at home”, que está disponível no site da Sociedade Chesterton.    

A narrativa está repleta de diálogos brilhantes, através dos quais o autor de O Homem Eterno critica a mentalidade moderna: a secularização da Inglaterra, o liberalismo, o racionalismo, o cientificismo, o tecnicismo, o idealismo alemão, a França revolucionária e sua liberté, egalité e fraternité etc. A história, a política, a polícia, e, como não poderia deixar de ser, a Religião também são temas explorados pelo grande escritor inglês com espantosa habilidade e argúcia e delicioso senso de humor.

Mesmo sendo jornalista de ofício, Chesterton, com o gume afiado de sua espada, não poupa o jornalismo:

“…não podemos esperar que o jornalismo se foque nos milagres permanentes: os editores ocupados não podem escrever nas manchetes: “Mr. Wilkinson ainda está salvo, ou Mr. Jones de Worthing não morreu ainda”; não podem de maneira nenhuma anunciar a alegria da humanidade, não podem descrever todos os garfos que não foram roubados, todos os casamentos que não acabaram em divórcio. Por isso, o retrato completo que nos fornecem da vida é necessariamente falacioso. Só podem falar do que é incomum; por mais democráticos que sejam, só podem levar em conta a minoria”. (p. 94)

Nem a Polícia fica sem levar alfinetadas. Num dos momentos do romance, os policiais são taxados de gordos e lentos. Com sua costumeira e mordaz ironia, Chesterton chega mesmo a dizer que “a polícia não estava acostumada a ouvir falar de princípios, nem mesmo dos princípios da sua própria existência”. 

O enredo do romance nos fala de uma fuga constante. Evelyn MacIan, escocês e católico — é importante lembrar que Chesterton, à época em que escreveu o livro, não era católico, ele só se converteu em 1922 —, “foi educado em certo isolamento e solidão”; já o senhor Mr. Turnbull, o ateu militante, é retratado como “um escocês diminuto e fogoso, de barba e cabelos fogosos e ruivos”. Ele é jornalista e redator do jornal O Ateu.

Evlyn MacIan, que é um devoto da Virgem Maria, “vivia como alguém a caminhar por uma fronteira, a fronteira entre este mundo e o outro. Como tantos homens e tantas nações que crescem acostumados à natureza e às coisas comuns, ele compreendera anjos diáfanos de pé no meio da grama elevada antes mesmo de avistar a grama; soube que as vestes de Nossa Senhora eram azuis antes de saber que as rosas selvagens aos pés d’Ela eram vermelhas.” (p. 66)

A narrativa se inicia com Maclan caminhando por Londres em busca de emprego, mas, ao passar pela Catedral Saint Paul, ele se depara com algo que lhe desperta a curiosidade. Em uma grande janela estão afixadas páginas e mais páginas do jornal O Ateu. Ao ler o que Turnbull escrevera, sobre o cristianismo ser apenas um mito e que, na mitologia, havia casos de deuses que seduziam virgens entre “outros exemplos de heróis e salvadores nascidos de relações escusas entre deuses e mortais”, MacIan quebra o vidro e salta para dentro do escritório, com nítido desejo de se vingar da blasfêmia feita à Virgem Santíssima.

Com aquele estardalhaço, rapidamente a polícia chega e prende Maclan e Turnbull. Diante do Juiz, que está perplexo ao saber que o motivo daquela algazarra toda havia sido religião, um assunto fora de moda, o magistrado questiona, com ironia, se Evan tinha o hábito de quebrar janelas para entrar em recintos. Em seguida, o togado pergunta:

Por que o senhor destruiu a vitrine desse honrado cidadão?”

Evan empalideceu com a mera lembrança do que havia lido, mas não respondeu com o mesmo literalismo frio e letal que estava demonstrando o tempo todo:

  “ Porque ele blasfemou contra Nossa Senhora.” (p. 72)

Não custa lembrar, novamente, que Chesterton, nessa época, entre 1905 e 1909, ainda não era católico. Mesmo assim, há outras inúmeras passagens em suas obras em que ele demonstra um enorme carinho e amor pela Mãe de Deus.

A romance segue com os dois liberados; porém, para honrar a Virgem Maria, Evan desafia Turnbull para um duelo de vida ou morte:

“Juro que nada ocupará minha mente ou meu coração até que nossas espadas se encontrem. Juro-o pelo Deus que você nega, pela Virgem Bendita contra quem blasfema, juro pelas sete espadas que atravessam o coração d’Ela, juro pela ilha santa onde meus pais estão enterrados, pela honra da minha mãe, pelo segredo do meu povo e pelo cálice do Sangue de Deus.” (p. 77)

O problema é que, na Inglaterra, os duelos estavam proibidos. E em todas as ocasiões nas quais eles tentam realizar a luta, sempre acontecem situações inusitadas que adiam o combate: uma hora é a chegada da polícia, outra hora a maré alta os impede, noutro momento, a presença inoportuna de algum excêntrico os constrange. (Chesterton é especialista em construir enredos cheios de peripécias, que prendem a atenção do leitor.)

Ao longo da fuga, pois eles são perseguidos por toda a polícia, a relação entre os dois tem momentos de camaradagem e de inimizade. Através de vários diálogos, o narrador expõe as visões de mundo antagônicas dos dois personagens. Mesmo assim, eles firmam um pacto de sangue e esta união de propósitos os mantêm lado a lado contra todos. O público vê naquele episódio inusitado, que é narrado por todos os jornais ingleses e por milhares de periódicos ao redor do planeta, os nomes, as fotografias e a luta desses dois homens, que passam a ser falados e conhecidos por todo o mundo.

Nessa corrida em busca de um lugar de paz para que a honra pudesse ser lavada, MacIan se encontra com uma jovem liberal e cética, porém honesta e desejosa da verdade, e TurnBull, paradoxalmente, aproxima-se uma jovem religiosa.

O final da narrativa é extraordinário. Ao fugir da polícia, eles pulam um muro alto de um lugar muito calmo e bonito. Percebem-se dentro de um hospício. E a surpresa (o plot twist) é que todos os personagens do romance estão presos no manicômio, pois todos são considerados loucos, conforme uma nova lei em vigor.  

Há diálogos interessantíssimos entre eles, o diretor do hospital e demais reclusos. Ao final, Lúcifer reaparece em sua nave e explica tudo o que havia feito para que o mundo enlouquecesse: “Disciplina para toda a sociedade é certamente mais importante do que justiça para um indivíduo”. (p. 278) Não posso dizer muito mais, pois corro o risco de estragar o final! A edição da Sociedade Chesterton Brasil, sem dúvida, é mais bela entre todas as já feitas do livro no mundo. Além da capa dura, da qualidade do papel e da diagramação, o livro traz prefácio, comentários e posfácio do Prof. Henriques Elfes. Elfes traduziu, na década de 1990, o capítulo Paradoxos do Cristianismo, capítulo do Ortodoxia, que foi publicado pela editora Quadrante com o mesmo título. Desde muitos anos é um estudioso empolgado e feliz da biografia e da obra do grande G.K.  Chesterton.

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