Por Dale Ahlquist
Tradução Davi James
Tradução do original St. Francis of Assisi [Lecture 41], disponível no site Chesterton.org
As dez “biografias” escritas por Chesterton são mais comentários do que relatos da vida e da obra dos biografados. Carregadas na análise, ligeiras na narrativa. E ainda mais ligeiras na apresentação dos fatos. Algumas vezes, os biografados parecem mesmo secundários, relativamente aos grandes temas que o autor pretende discutir. O livro de Chesterton sobre São Francisco, no entanto, é diferente de qualquer outra biografia escrita por ele. Há muito mais fatos. A narrativa é bem direta e bastante dramática. A parte crítica, em vez de se sobrepor à narrativa, respalda-a. As outras biografias chestertonianas são, com efeito, completamente dominadas por Chesterton (o que, na maior parte dos casos, é o que nos agrada mais); esta, contudo, acertadamente transborda do grande santo de Assis. Chesterton não apenas faz São Francisco falar por si mesmo, mas fá-lo da maneira que mais agradaria ao fradezinho: transmitindo não as suas palavras, mas a sua vida. O escritor inglês descreve São Francisco como “um poeta cuja vida inteira foi um poema”.
Trata-se verdadeiramente do primeiro livro escrito por Chesterton após a sua entrada na Igreja Católica, já que os outros eram coletâneas de poemas, ensaios e histórias policiais. No entanto, não percebemos uma grande transição na escrita chestertoniana. Uma das razões disso é que a sua conversão representou a culminação de um longo e contínuo processo, durante o qual a sua maneira de pensar nunca mudou realmente. Foi como a floração de todas as suas ideias. Mas há ainda outro motivo, e diz respeito a São Francisco. O escritor inglês sempre admirou esse santo. Francisco, diz ele, “jamais lhe fora estranho” e representava uma espécie de ponte entre a sua vida literária inicial e a posterior.
São Francisco é um dos santos mais populares e um dos mais mal compreendidos. Chesterton diz que o mundo aprecia o santo, mas não a santidade.
Chesterton descreve a transição de Francisco, de soldado e combatente a construtor e reformador. Descreve-o como um trovador e um clown de Deus, a cantar e a dançar por seu Senhor. Por fim, examina em profundidade o misticismo do santo.
O que é incrível a respeito do misticismo é o quanto se trata de algo físico. Tudo na história de Francisco é palpável. Ele dá todos os seus haveres aos pobres, até a roupa do corpo (e, de maneira algo insensata, também os haveres de seu pai). Francisco ouve a voz de Cristo dirigindo-se a ele a partir de um crucifixo dependurado na parede da Igreja de São Damião, pedindo-lhe que reconstruísse a igreja, e imediatamente reúne pedras e começa a reparar o edifício. Veste trapos, com uma corda no lugar do cinto. Abraça a pobreza como outros homens abraçam a riqueza; anseia pelo jejum como outros anseiam por comida. Abraça não apenas todos os homens e mulheres como seus irmãos e irmãs, mas todas as criaturas, grandes e pequenas.
Tendo alcançado uma profundidade espiritual que seria mais do que suficiente para as demais pessoas, Francisco precipita-se mais além, mais profundamente. Desaparece numa caverna para estar a sós com Deus.
O homem que emergiu daquela caverna, diz Chesterton, não era o mesmo que ali entrou. O que quer que lhe tenha acontecido “há de permanecer muito obscuro para a maioria de nós, homens ordinários e egoístas a quem Deus não quebrantou para fazer homens novos.” Curiosamente, porém, Chesterton parece saber do que se trata. O místico, diz ele, atravessa esse momento quando não há nada a não ser Deus.
Se um homem visse o mundo ao contrário, com todas as árvores e torres de cabeça para baixo, como se numa lagoa, um dos efeitos disso seria ele enfatizar a ideia de dependência… Ficaria grato por Deus não ter pingado o cosmos inteiro como um vasto cristal a ser estilhaçado em estrelas-cadentes. Pode ser que São Pedro tenha visto o mundo assim, quando o crucificaram de cabeça para baixo (…). Em um (…) sentido cínico (…) os homens disseram: “Bem-aventurado aquele que nada espera, pois não será enganado.” Porém foi num sentido inteiramente positivo e apaixonado que São Francisco disse: “Bem-aventurado aquele que nada espera, pois gozará de tudo.” Foi por meio dessa ideia deliberada de começar do zero (…) que ele chegou a gozar até as coisas mundanas, como poucos as gozaram.
Como o próprio Cristo, esse imitador de Cristo teve discípulos. Francisco foi com onze de seus companheiros, todos em trajes rústicos, solicitar ao Papa Inocente III a criação de uma nova ordem religiosa. Muitos dos seguidores de São Francisco, porém, tratavam-no como fundador de uma nova religião. O espírito franciscano trouxe certo frescor ao mundo inteiro. E também um frescor à Igreja. Ora, a Igreja naquela época tinha mais de mil anos, e sentia o peso da sua idade. O frescor e a liberdade dos primeiros cristãos então pareciam tão perdidos e distantes quanto parecem agora. A Igreja precisava mesmo da renovação trazida por Francisco, mas havia um perigo real de que o amplo movimento franciscano varresse toda a cristandade. O Papa compreendeu que, por maior que fosse Francisco, não havia necessidade de todos os cristãos se tornarem como Francisco. O Papa acertadamente determinou que, tivesse o movimento franciscano se tornado uma nova religião, teria sido uma religião pouco vasta, algo menor do que a Igreja Universal.
Chesterton apresenta Francisco como espelho de Cristo, a refletir a luz de Cristo como a lua reflete o sol. A humildade de Francisco o impediu de jamais perceber isso. Ele “estava cheio do sentimento de que não havia padecido o suficiente para ser digno sequer de ser um discípulo distante de seu Deus padecente”. Não se considerava “digno nem mesmo da sombra da coroa de espinhos”. Mas tudo leva a crer que ele era. Francisco, o Espelho de Cristo, tivera literalmente o corpo trespassado pelas chagas de Cristo.