Com muita alegria, a Sociedade Chesterton Brasil entrevista o grande admirador e tradutor de Chesterton, Ives Gandra Martins Filho. Gandra é Presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Ele traduziu o livro Ortodoxia de Chesterton.
SCB – Ministro, muito obrigado por se dispor a atender-nos nesta entrevista. Em primeiro lugar, sabemos que o sr. é também um admirador de G. K. Chesterton, tendo já feito a tradução de Ortodoxia e a apresentação de Hereges. De onde vem seu interesse por Chesterton? Como foi seu contato inicial com o autor?
Meu primeiro contato com Chesterton foi no final dos anos 70, através de um amigo, que me recomendou ler o “Ortodoxia”, na edição portuguesa que conseguira. Fiquei encantado desde o primeiro momento. Acabando, quis relê-lo imediatamente, para fichar, isto é, recolher em fichas as frases ou parágrafos mais impactantes do livro, para palestras e círculos de estudos. Quase que anoto tudo, tão difícil é selecionar o que é mais significativo no livro.
SCB – O que mais lhe agrada no estilo de Chesterton?
A capacidade de unir forma e fundo no que escreve, fazendo da prosa poesia. Não só argumenta impecavelmente, mas suas metáforas e paradoxos chegam a ser irrespondíveis. “Louco é aquele que perdeu tudo menos a razão”, diz ao falar do psicopata com mania de perseguição, o que é notório. “O poeta só quer colocar a cabeça no Céu, ao passo que o racionalista pretende colocar o Céu na cabeça, e esta termina por estourar”, explica sobre a pretensão humana de desvendar todos os mistérios do universo. Seriam centenas as citações que poderíamos fazer de impactantes captações do bom senso chestertoniano.
SCB – Não se trata de um autor “católico”, com interesse apenas para os católicos?
Absolutamente. Tanto que seu livro “Hereges” serve para analisar o pensamento racionalista moderno e os exageros a que chega, quando se perde o marco do senso comum. É óbvio que a perspectiva cristã está presente em toda a sua obra, pois o próprio “Ortodoxia” foi escrito a partir do desafio que lhe lançaram quando escreveu “Hereges”, no sentido de que era fácil criticar o pensamento alheio, sem se explicitar e se comprometer com o próprio. E nele Chesterton descreve o processo de sua conversão e do credo em que acredita, princípios que não seriam privilégio dos cristãos. Tanto que compara a Moral cristã com a ética do país das fadas.
SCB – Chesterton escreveu para os ingleses do século XX. Qual sua importância para os brasileiros do século XXI?
Fazemos parte da civilização Ocidental, colonizados que fomos pelos portugueses. Nossa Civilização tem como claro tripé de sustentação a filosofia grega, a religião cristã e o direito romano. Na medida em que vamos perdendo esses valores e pontos referenciais, vamos nos despersonalizando e decaindo civilizacionalmente. Ler Chesterton é recuperar a saúde mental, o referencial e a própria alegria. Quando estou deprimido com o que vejo de decaimento dos valores morais na sociedade contemporânea, basta ler um pouco de Chesterton para recuperar de imediato o otimismo.
SCB – Embora fosse famoso em sua época, Chesterton é muito pouco conhecido hoje. A que o senhor atribui este fenômeno, e como vê a recente tendência a redescobrir seus escritos, que vêm sendo republicados com sucesso nos últimos anos?
É que Chesterton não era politicamente correto. Criticava acerbamente o pensamento materialista e positivista de sua época. Mas o fazia com tal elegância, que até seus adversários o admiravam e respeitavam. Nunca levava as divergências para o campo pessoal. Tanto que um de seus melhores amigos era Bernard Shaw, pessimista de marca maior. Como, na atualidade, os exageros do politicamente correto vão constrangendo em campos que afetam cada vez mais a nossa intimidade e modo de vida, a reação começa a ser mais forte. E Chesterton é um campeão nesse campo.
SCB – Com efeito, embora fosse bastante seguro e firme ao defender suas convicções, Chesterton tinha muitos amigos, inclusive entre seus adversários. De que forma isto poderia ser uma lição nesta época de tensões e polarização política que vivemos atualmente?
Se o que buscamos sinceramente é a verdade e o bem comum da sociedade, comungamos dos mesmos fins. Podemos divergir quanto aos meios, uns defendendo uma intervenção maior do Estado e outros um Estado menor. Mas o que não podemos é partir para os ataques pessoais ou achar que os fins justificam os meios e defender bandeiras com quaisquer armas. Ler Chesterton ajuda, nesse sentido, a saber argumentar com leveza e simpatia, relevando ataques e aproveitando o que do outro é verdadeiro, bom e belo.
SCB – Dentre os livros de Chesterton, qual o mais importante, em sua opinião?
É difícil dizer, pois é uma apreciação muito pessoal. Mas se fosse elencar aqueles que mais me influenciaram, sem dúvida o primeiro seria “Ortodoxia”, seguido de “O Homem Eterno”, verdadeiro tratado de antropologia filosófica, mas culminando com a visão do Ecce Homo, Jesus Cristo. Marcaram-me também “A Volta de Dom Quixote”, verdadeira apologia fundamentada da Idade Média, e a série de romances policiais do Pe. Brown.
SCB – Em sua opinião, qual o maior problema da cultura no Brasil? E quais caminhos possíveis para resolvermos?
Cultura não se improvisa. É fruto de anos, séculos de tradição. A raiz do problema está na educação. Querer simplificar o processo educativo, nivelando-o por baixo é, talvez, o maior mal que explica nossa cultura deficiente e nossos problemas técnicos e éticos da atualidade. A generalização dos cursos superiores, do que é exemplo o de direito, fez com que o exame de ordem reprovasse mais de 80% dos candidatos, mostrando quão fracos são os cursos. Fazer faculdade apenas para se ter um diploma, ou então se exigir, tanto no ensino médio como superior a aprovação generalizada dos alunos é o que compromete a qualidade e a própria cultura. Não se trata de elitizar, mas de exigir mais dos que ingressam no ensino médio e superior, para se obter profissionais de qualidade e não meros diplomados.
SCB – Qual sua opinião sobre distributismo? O senhor julgaria aplicável no cenário brasileiro?
Chesterton, como qualquer um de nós, não deixa de ser filho do seu tempo. Aristóteles chegou a sustentar filosoficamente a instituição da escravidão, como algo natural de seu tempo. O distributivismo é uma doutrina chestertoniana por demais otimista, olvidando os males do pecado original. Se nos ativermos a viver os princípios da doutrina social cristã em matéria de Justiça Social, conjugando, por exemplo, o princípio da proteção com o da subsidiariedade, teremos a justa equação do ponto de vista do equilíbrio na intervenção do Estado no domínio econômico e social, implementando aquela que é a Justiça Distributiva por natureza.
SCB – Chesterton foi um grande defensor do homem comum, do homem simples, que tira o pão do seu suor e que cuida de sua família; o senhor como ministro do trabalho lida com diversos casos de injustiças, como nós, pessoas comuns, podemos aplicar a distributismo em nossas relações do dia a dia?
O que caracteriza o homem bom são as virtudes que possui e exercita. Já Aristóteles falava das quatro virtudes cardeais que devemos viver, nisso consistindo nossa felicidade e dos outros. Pois bem, a principal delas é a da justiça, de dar a cada um o que é seu. Pois bem as três outras existem para tornar possível exercitar esta, cumprindo adequadamente nossos deveres. Assim, pela prudência, decidimos adequadamente o dever a cumprir e o direito a dar, vencendo as tentações do medo, pela virtude da fortaleza, e do desejo, pela virtude da temperança. Assim, qualquer esforço na linha distributivista deverá estar calcado na visão ética das três formas de Justiça, a comutativa, entre os iguais, a distributiva, do Estado para com seus cidadãos, e a legal, do cidadão para com o Estado, que é cumprir as suas leis.