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SCB entrevista Scott R. Paine, autor do livro Chesterton e o Universo

A SCB realizou essa entrevista com o professor Scott Randall Paine*, autor do livro Chesterton e o Universo. Paine é sacerdote da Arquidiocese de Brasília e professor da Universidade Federal de Brasília (Currículo Lattes.) e autor do site  3wisdoms.com Para essa entrevista contamos com o apoio de Samuel Cardoso Santana.

Primeiramente, quem é o professor Scott Randall Paine, como surgiu o interesse por Chesterton?

Desde 14 anos de idade, fiquei fascinado por dois assuntos: filosofia e religião.  Como adolescente, não consegui ver a diferença entre eles.  Depois, claro, entendi que há uma distinção importante, mas continuo achando que não devem ser separados, mesmo sendo distintos.  Teologia, de certa forma, é apenas uma continuação da atividade filosófica no meio de um novo mundo de objetos revelados pela fé.  Assim sempre tive pouca simpatia por filósofos e filosofias sem abertura para transcendência religiosa, ou ao invés, pessoas religiosas sem, pelo menos, respeito pela obra da razão dentro da fé.  Fé e razão não são apenas compatíveis na minha mente; são melhores amigos – ou, mudando a metáfora, usando as palavras de São João Paulo: “as duas asas com as quais o espírito humano alça vôo para contemplar a verdade.”  A primeira vez que o livro Ortodoxia de Chesterton caiu em minhas mãos em 1972, reconheci imediatamente uma mente que exemplificou esta sintonia de forma extraordinária.  Desde então sou fã tanto filosófico quanto teológico de GKC. Mal existe uma página dele que não contém catalisadores de intuições surpreendentes, mas, ao mesmo tempo, obviamente verdadeiras.

O seu Livro “Chesterton e o Universo” foi considerado pela Gilbert Magazine como “o estudo definitivo de Chesterton, o filósofo”. Quais seriam as possíveis linhas filosóficas que os pesquisadores poderiam pesquisar?

Além da leitura filosófica que eu mesmo desenvolvi do livro Ortodoxia (identificando os dois princípios fundamentais – o teórico e o prático – que estruturam, quase subconscientemente, o discurso do livro) eu sugiria três linhas de pesquisa:  1) um estudo filosófico/antropológico do livro O homem eterno, focalizando na singularidade da natureza humana, em polêmica com reducionismos tão correntes hoje, nos quais a diferença entre homem e animal é reduzida a uma gradação quantitativa em vez de um salto incomensurável (primeira metade do livro);  2) um estudo na Filosofia da Religião sobre a singularidade da figura e do papel de Cristo, em polêmica com reducionismos simplórios na Religião Comparada (segunda metade do livro);  3) uma articulação das ideias nas obras sociais de GKC (há vários), em diálogo com a doutrina social da Igreja nas encíclicas sociais dos papas e no Compêndio da Doutrina Social da Igreja.  ***  No entanto, quanto a (2), observações chestertonianas sobre as religiões orientais sofrem um pouco dos limites da sua época em relação às tradições mais profundas da Índia e China; estamos em condições hoje de engajá-las com mais discernimento do que foi possível no início do século XX, quando apenas interpretações ‘teosóficas’ e até evolucionistas predominavam no entendimento ocidental do Oriente.

Chesterton foi tomista, seguiu os princípios da filosofia de Santo Tomás de Aquino, mas não utilizou sua linguagem, ao contrário, tinha uma retórica própria que trouxe para o pensamento tomista uma nova forma de ser apresentada. Como Chesterton construiu essa argumentação?

Hesito um pouco em chamar GKC de ‘tomista’, porque há contextos nos quais podia ser chamado também agostiniano, platônico, aristotélico, fenomenologista, existencialista, analítico, hermeneuta, etc.   Seus hábitos intelectuais e imaginativos ficaram sempre programaticamente abertos ao real, apareça onde aparecer, ocorra onde ocorrer.  Não foi ‘membro’ de alguma escola de pensamento, e sim companheiro de viagem com todo pensador honesto e humilde que procura a verdade.  Tomistas ‘de carteirinha’, às vezes, usam os textos de Tomás como um catecismo, e citam ele mais como autoridade indiscutível do que como um buscador da verdade, e Chesterton nunca pensou assim quando filosofou.  Catecismos têm seu uso, como listas de verificação da fé, mas não tem emprego algum na filosofia, nem, na verdade, na teologia.  Se GKC se alinhou, filosoficamente, com Tomás de Aquino, foi quando Tomás servia de despertador de inspirações e intuições, especialmente na metafísica, na antropologia filosófica e na ética.  O livro de GKC sobre Tomás é evidência disso.  E o fato que escreveu outro livro, igualmente brilhante e inspirador, sobre Francisco de Assis (quase como volume II de uma hagiografia dos santos mais chestertonianos) mostra que a mente dele estava livre de ‘ismos’ e, na frase famosa de Francis Thompson, foi um verdadeiro ‘hound of heaven’ (cão do Ceu).

Como os contos de fadas influenciaram na formação de Chesterton? Além destes, ele cita a influência de clássicos da literatura universal, em especial da língua inglesa, qual a real influencia que tiveram em sua obra?

O papel da imaginação poética em Chesterton não se limita à sua produção de romances, histórias de Pe. Brown e suas centenas de poemas, mas acompanha o trabalho intelectual pari passu, uma vez que – segundo Aristóteles e Tomás – a conversio ad phantasmata (ou seja, a volta às imagens) faz parte da inteleção integral.  E nossa experiência sensorial, antes do início da reflexão racional, constitui uma fase essencial do nosso confronto com a realidade, e isso não apenas por fornecer um tipo de primeiro contato com os entes ao nosso redor, mas também por criar uma ‘atmosfera’ do real que deveria acompanhar e arraigar, pré-racionalmente, todos os esforços racionais de filosofia e teologia que seguirão.  Poesia e as artes não são apenas diversões de domingo para GKC, mas acessos sui generis à realidade – acessos a serem complementados e aprofundados pelo trabalho da razão, mas nunca substituído por ele.  Além disso, uma mente madura, no final do seu percurso pelos labores de lógica, argumentação e discurso, voltará à dimensão ‘mito-poética’ como ambiente nativo da verdade. A poesia, enfim, começa com deleite e se desemboca em espanto, onde nasce a filosofia; a filosofia, por sua vez, começa com espanto e se desemboca em adoração (acompanda por música, é claro).

Chesterton viveu de forma a encarnar seus princípios em ação, é possível descrever sua filosofia por uma biografia? Para além da biografia de Joseph Pearce, existem outras biografias de referência?

Atestado por tantos de seus contemporâneos (inclusive seus adversários intelectuais), Chesterton foi uma pessoa que amou, e que amou todo mundo (uma façanha que seria, para maioria de nós, herculeana).  O amor dele sempre prevaleceu sobre a acuidade de seus argumentos e raciocínios, por mais devastadores e vicoriosos que fossem.  Ninguém sentiu-se diminuído como ser humano quando Chesterton triunfou em um debate, mas apenas corrigido.  Como deveria ser o caso com qualquer cristão que se preza, seu exemplo falou mais alto do que suas palavras.  ***  Quanto a uma narrativa escrita de sua vida, além da sua própria autobiografia, fica insuperável a biografia de Maisie Ward (duvido se já foi traduzido, é comprido).

Desde a publicação do seu livro aqui no Brasil várias obras inéditas de Chesterton têm sido publicadas. Como o senhor tem acompanhado esse renascimento do interesse pelo “gênio colossal”, como Chesterton foi chamado por Bernard Shaw?

Fiquei surpreso e feliz ao ver novos leitores de GKC aqui no Brasil.  Seu estilo e humor inglês são difíceis a traduzir – especialmente para uma língua românica – mas o crescimento de interesse na sua obra aqui mostra que são suas intuições e seu ‘estilo de pensar’ que transcendem limites inevitáveis da língua escrita.

Como podemos levar o pensamento e obra de Chesterton para as universidades? 

Eu descobri Chesterton como universitário, então sei que pessoas nessa faixa de idade podem ler e amar nosso autor. Já introduzi inúmeros alunos ao GKC na universidade onde leciono.  Porém, há um obstáculo que deveria ser desmontado. Chesterton não foi, puro e simplesmente, um ‘conservador’, nem foi um militante ‘da direita’.  Essas categorias desvirtuam a vastidão da visão e a hospitalidade intelectual de Chesterton.  Não há dúvida de que ele promoveu valores tradicionais e poderia ser visto como representante (com certas ressalvas) de uma ‘filosofia perene’.  Mas insistiu que a verdade seja vista, experimentada, saboreada, curtida, e não apenas conservada em vinagre por causa da sua antiguidade.  E, para ele, quem não percebe a ‘novidade surpreendente’ das grandes verdades, não as entendeu.  Ele teria concordado com Confúcio quando falou que alguém pode ser um mestre somente quando consiga produzir novidade pela preservação da tradição.  Também no campo socio-econômico, o pensamento chestertoniano não aceita categorização ideológica.  O ‘distributismo’ econômico, defendido resolutamente por Chesterton, seria visto como quase marxista por alguns conservadores da direita, e como suspeitamente medieval por alguns radicais da esquerda.   ***  Quero que todo mundo possa abrir os livros de Chesterton, não apenas aqueles que pretendem usá-lo para minar argumentos apologéticos ou simplesmente confirmar crenças que já têm.  Chesterton é um descobridor, um aventureiro intelectual e imaginativo, e só quem esteja aberto a aprender de novo, e ter suas convicções desafiadas e talvez rejuvenescidas de forma inédita, vai receber a luz e a adrenalina que suas obras oferecem.

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*Professor Associado IV da Universidade de Brasília e pesquisador da mesma instituição, com estudos na Universidade de Chicago (1970-71), graduação em Classical Antiquities (Latim e Literatura Latina) pela Universidade de Kansas, EUA (1974), graduações separadas em Filosofia e Teologia, seguidas por mestrado (1982) e doutorado (1988) em Filosofia pela Universidade Pontifícia de Tomás de Aquino em Roma. Livro publicado nos Estados Unidos sobre o pensamento de G.K. Chesterton em 1999, com tradução portuguesa lançada no Brasil em 2008; vários capítulos de livros e artigos sobre questões filosóficas e religiosas em português e inglês. Experiência nas áreas de Filosofia, Teologia e Ciências da Religião, com ênfase em Filosofia Medieval, Filosofia Oriental, Metafísica e Teologia e Filosofia Comparadas. Foi pesquisador visitante na Universidade Nacional de Cingapura em 2007 e Visiting Scholar no Centro para o Estudo das Religiões Mundiais da Universidade de Harvard em 2013. site: www.disciplinedwonder.com

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