G. K. Chesterton * 1874 / + 1936
Traduzido do inglês por Márcia Xavier de Brito
Um correspondente escreveu-me perguntando o que quis dizer ao afirmar que William Shakespeare (1564-1616) era católico e John Milton (1608-1674), protestante. Que Milton era protestante, suponho, não há o que discutir. Ao menos, o leitor não contestará isso caso tenha a mínima crença na possibilidade dos mortos retornarem enfurecidos a este mundo. Mas o tópico a respeito da religião de Shakespeare, certamente, é menos óbvio, embora não menos verdadeiro.
A verdadeira diferença entre religião e mera filosofia é (dentre outras coisas) a seguinte: ainda que somente pessoas perspicazes possam compreender a diferença entre filosofias, pessoas bastante simples e bem obtusas (como nós) conseguem compreender a diferença entre religiões porque é uma diferença entre duas coisas diferentes. A diferença entre duas filosofias é como a diferença entre duas soluções de um problema geométrico. A diferença entre duas religiões é como a diferença entre o aroma de cebolas e o aroma do mar. Ambas as religiões podem fazer muito bem; o mar é bom e as cebolas são ainda muito melhores que o mar. Todavia, ninguém precisa ser culto para distinguir um aroma do outro.
Todo o mundo do labor prático testemunha tal fato: de que pessoas comuns não reconhecem uma filosofia como realidade da mesma maneira que reconhecem uma religião como uma realidade. Existem pessoas reais, que vivem em casas de verdade que não teriam como criado um católico. Nunca ouvi falar de pessoas, em qualquer tipo casa, que anunciem nos jornais que não contratariam criados hegelianos. As pessoas ficam horrorizadas ao saber que alguém é ateu, evitam-no moralmente, quase evitam-no fisicamente. Mas pessoas comuns não evitam hegelianos: simplesmente apiedam-se dele. Fazem o que podem para tornar a vida dessa pessoa mais feliz: e o tornam Ministro da Guerra [1].
Mas, em todas essas coisas, características da religião, há uma dupla dificuldade: a de que embora todos possam senti-la, ninguém consegue expressá-las. Não há governanta que ao contratar uma empregada acredite, por um momento, na moderna teoria de que todas as religiões, na verdade, são uma única coisa. É provável que por ser uma governanta sensata preliminarmente objetará, com razão, à ideia de uma empregada não ter nenhuma religião. Mas certamente sentirá que caso a empregada seja uma salvacionista, terá um tipo de dificuldade, se a empregada for católica, outro tipo de dificuldade e na hipótese da criada ser hindu, uma dificuldade diferente. Todavia, apesar da diferença ser óbvia para os sentidos, é obscura para a linguagem. A mais simplória das pessoas pode perceber isso; a mais sagaz não consegue definir.
Exatamente por que razões sinto uma religião em um e outra religião noutro autor, com todo respeito, recusar-me-ei a responder num espaço como este. Creio que as observações de Aristóteles (384-322 a.C.) são, de certo modo, demasiado sintéticas para que sejam claramente compreendidas; não obstante, compreendo que Aristóteles era pagão. Acredito que as observações de Lorde Meath [2], em contrapartida, são um tanto difusas e grandes demais, todavia seria capaz de apostar, em quaisquer circunstâncias, que Lorde Meath nasceu após a introdução do cristianismo na Europa. Essas impressões são difíceis de explicar, porque são impressões a respeito de tudo.
Mas aqui, ao menos, há uma forma de expôr a diferença entre as religiões de Shakespeare e Milton. Milton estava imbuído daquilo que, creio, seja a primeira e mais refinada forma de protestantismo — a ideia da alma individual verdadeiramente testar e experimentar toda a verdade que existe, e chamando a verdade não testada ou experimentada de um tipo menos valioso e menos vívido de verdade. Mas Shakespeare estava totalmente imbuído de um sentimento que é a primeira e mais refinada ideia de catolicismo — a verdade existe, gostemos ou não, e cabe a nós acomodar-mo-nos a isso. Milton, com esplêndida infalibilidade e brilhante intolerância, partiu para descrever como as coisas, na verdade, devem ser explicadas. Milton tivera a visão de que:
“Para eu poder, de tal assunto ao nível,
Justificar o proceder do Eterno
E demonstrar a Providência aos homens”.
(“Paraíso Perdido”, Canto I)
Mas quando Shakespeare fala da verdade divina é sempre como algo do qual ele mesmo se afastou, algo que ele mesmo pode ter esquecido:
“Oh […] se ao menos o Eterno não houvesse
Condenado o suicídio!”
(“Hamlet”, Ato I, cena 2)
Ou ainda:
“Mas se é pecado ambicionar a glória,
Sou o maior pecador que está com vida”.
(“Henrique V”, Ato IV, cena 3)
No entanto, realmente não sei como essa indescritível questão pode ser mais bem delineada que simplesmente dizer: a religião de Milton era a religião de Milton e a religião de Shakespeare não era de Shakepeare.
Notas da Tradutora
[1] Referência a Richard Burdon Haldane (1856-1928), 1º Visconde de Haldane, politico, advogado e filósofo. Foi nomeado Ministro da Guerra de 1905 a 1912.
[2] Reginald Brabazon (1841-1929), 12º Conde de Meath, político e filantropo inglês.
O presente ensaio foi publicado originalmente na edição de 8 de junho de 1907 do semanário “The Illustrated London News”.
Este artigo é protegido pelas leis de Direitos Autorais, sua reprodução é proibida sem a autorização do Centro interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP). A publicação do artigo no site da Sociedade Chesterton Brasil foi gentilmente permitida pelo CIEEP.