G. K. Chesterton
Tradução: Mateus Leme
Capítulo do livro Considerando todas as coisas, 2013, editora Ecclesiae.
Em geral, instintivamente, na ausência de qualquer razão especial, a humanidade detesta a ideia de qualquer coisa escondida – isto é, detesta a ideia de qualquer coisa escondida com sucesso. Esconde-esconde é um passatempo popular; mas assume a verdade do texto, “Buscai e achareis”. A humanidade ordinária (gigantesca e invencível em seu poder de alegrar-se) pode extrair uma grande quantidade de prazer de um jogo chamado “esconda o dedal”(1), mas isso é só porque é na realidade um jogo de “achar o dedal”. Suponha que no final de um jogo desses o dedal não tenha sido encontrado; suponha que seu paradeiro fosse desconhecido para sempre: o resultado sobre os jogadores não seria divertido, mas trágico. Aquele dedal atormentaria todos os seus sonhos. Morreriam todos em hospícios. O prazer está todo no pungente momento de passagem da ignorância para o conhecimento. Histórias de mistério são muito populares, especialmente quando vendidas por seis pence; mas isso é porque o autor de uma história de mistério revela. É apreciado não porque cria o mistério, mas porque o destrói. Ninguém teria a coragem de publicar uma novela policial que deixasse o problema exatamente como encontrado. Isso levaria até mesmo o público de Londres à revolta. Ninguém ousa publicar uma história de detetive em que não há descoberta.
Há três amplas classes de coisas especiais em que a sabedoria humana permite o segredo. A primeira é o caso que mencionei – do esconde-esconde, ou da novela policial, em que se permite o segredo para explodi-lo e despedaçá-lo. Primeiro o autor cria um fastidioso segredo sobre como o Bispo foi assassinado, apenas para enfim declarar para todo o povo, como de uma alta torre, a grande e alegre notícia de que foi assassinado pela governanta. Nesse caso, a ignorância só é valorizada porque ser ignorante é a melhor e mais pura preparação para receber as horríveis revelações da vida superior. De maneira algo semelhante, ser um agnóstico é a melhor e mais pura preparação para receber as felizes revelações de São João.
Podemos descartar esta primeira espécie de segredo, pois toda a sua última finalidade não é manter o segredo, mas revelá-lo. Há então uma segunda e bem mais importante classe de coisas que a humanidade concorda em esconder. São tão importantes que não é possível discuti-las aqui. Mas todos sabem a que tipo de coisas me refiro. Em relação a elas, gostaria de observar que embora sejam, de alguma forma, um segredo, são também um “sécret de Polichinelle”(2). Sobre sexo e assuntos semelhantes estamos em uma maçonaria humana; a maçonaria é disciplinada, mas é livre. Pede-se que mantenhamos silêncio sobre essas coisas, mas não nos pedem que as ignoremos. Pelo contrário, o raciocínio humano fundamental é no sentido inteiramente oposto. É a coisa mais comum à humanidade que é mais encoberta por ela. Exatamente porque todos sabemos que está lá, não precisamos dizer que está.
Então há uma terceira classe de coisas nas quais a melhor civilização permite o segredo, e exclui qualquer inquérito ou explicação. É o caso de coisas que não precisam ser explicadas, porque não podem sê-lo, coisas muito etéreas, instintivas ou intangíveis – caprichos, impulsos súbitos, e o tipo mais inocente de preconceito. Não se deve perguntar a um homem por que é loquaz ou calado, pela simples razão de que ele mesmo não sabe. Não se pergunta a um homem (nem mesmo na Alemanha) por que caminha lenta ou apressadamente, simplesmente porque não poderia responder. Um homem deve escolher seu próprio caminho através de um bosque, e aproveitar como quiser um feriado. E a razão é esta: não porque tenha um bom motivo, mas na verdade porque tem um motivo fraco; porque tem um leve e efêmero sentimento sobre o assunto, impossível de explicar a um policial, e que talvez a própria aparição deste de trás de um arbusto poderia destruir. Deve agir pelo impulso, porque o impulso não tem importância, e pode nunca ocorrer-lhe novamente. Se preferirem, deve agir por impulso porque não vale a pena pensar nele. Todos esses caprichos sentidos pelos homens deveriam ser privados; e até mesmo os fabianos nunca propuseram interferir neles.
Ora, ao longo da última quinzena os jornais estiveram cheios de comentários muito variados sobre o problema do segredo de certas partes de nosso financiamento político, e especialmente o problema dos fundos partidários. Alguns jornais fracassaram completamente em entender do que se trata a briga. Insistem em que os membros Irlandeses e do Partido Trabalhista também estão por baixo do pano, ou, como alguns disseram, ainda mais por baixo. O fundamento dessa frenética declaração parece ser, quando considerado pacientemente, simplesmente isto: que os membros Irlandeses e Trabalhistas recebem dinheiro pelo que fazem. Todas as pessoas nesta terra, até onde sei, recebem dinheiro pelo que fazem; a única diferença é que algumas pessoas, como os membros da Bancada Irlandesa, trabalham.
Não consigo imaginar que qualquer ser humano possa pensar que outro ser humano seja capaz de secundar a proposta de que os homens não deveriam receber dinheiro. O ponto é simplesmente que, como sabemos que existe um dinheiro dado devidamente e outro indevidamente, um bom senso elementar nos leva a olhar com indiferença para o dinheiro entregue no meio de Ludgate Circus (3), e com uma particular suspeita para o dinheiro que um homem não entrega a não ser que esteja trancado em uma caixa ou cabine de banho (4). Em resumo, é uma grande tolice supor que qualquer um pudesse alguma vez discutir o desejo por fundos. A única coisa que mesmo os idiotas poderiam em qualquer momento discutir seria o encobrimento dos fundos. Portanto, a questão toda que temos de considerar é se o encobrimento de transações monetárias políticas, a compra de títulos de nobreza, o pagamento de gastos eleitorais, é um tipo de segredo pertencente a qualquer uma das três classes que mencionei como aquelas em que o costume e instinto humano nos permitem ser secretos. Sugeri três tipos de segredos que são humanos e defensáveis. Esta instituição pode ser defendida por qualquer deles?
Agora a questão é se esse segredo político é de qualquer um dos tipos que se podem chamar legítimos. Dividimos grosseiramente os segredos legítimos em três classes. Primeiro, vem o segredo que só é mantido para ser revelado, como nas histórias de detetives; segundo, o segredo que é mantido porque todos o conhecem, como no sexo; e terceiro, o segredo que é mantido porque é muito delicado e vago para ser explicado, como na escolha de um passeio pelo campo. Alguma dessas amplas categorias humanas engloba um caso como o do segredo das finanças políticas e partidárias? Seria absurdo, e até mesmo deliciosamente absurdo, pretender que qualquer uma delas o fizesse. Seria uma fantasia louca e encantadora sugerir que nossos políticos mantêm os segredos políticos apenas para poderem fazer revelações políticas. Um nobre moderno só finge que mereceu seu título para poder declarar com mais dramaticidade, com um grito de escárnio e alegria, que na realidade o comprou. O baronete faz de conta que mereceu seu título apenas para tornar mais requintado e impressionante o grandioso fato histórico de que na verdade não o mereceu. Com certeza isso soa improvável. Certamente nossos governantes não podem estar todos se guardando para o entusiasmo de um arrependimento no leito de morte. O autor de novelas policiais faz de um homem um duque apenas para destruí-lo com uma acusação de roubo. Mas certamente o Primeiro Ministro não faz de um homem um duque apenas para destruí-lo com uma acusação de suborno. Não; a teoria detetivesca sobre o segredo dos fundos políticos deve (com um suspiro) ser abandonada.
Também não podemos dizer que a coisa seja explicada por aquele segundo caso do segredo humano que é tão secreto que é difícil de discutir em público. Preserva-se o pudor sobre certos assuntos humanos primários precisamente porque todos sabem tudo sobre eles. Mas o pudor relativo às contribuições, compras e títulos de nobreza não é mantido porque a maioria dos homens comuns sabem o que está acontecendo; é mantido precisamente porque a maioria dos homens comuns não sabem o que está acontecendo. A cortina ordinária do decoro cobre os procedimentos normais. Mas ninguém dirá que ser subornado é um procedimento normal.
E se aplicarmos o terceiro teste a este problema do segredo político, o caso é ainda mais claro e mais divertido. Com certeza ninguém dirá que a compra de títulos de nobreza e coisas assim são mantidas em segredo porque são tão leves e irrelevantes que podem ser assuntos de gosto individual. Uma criança vê uma flor e pela primeira vez sente-se inclinada a colhê-la. Mas sem dúvida ninguém dirá que um cervejeiro vê um diadema e pela primeira vez pensa repentinamente que gostaria de ser um nobre. O impulso da criança não precisa ser explicado à polícia, pela simples razão de que não poderia ser explicado a ninguém. Mas será que alguém acredita que as laboriosas ambições políticas dos modernos homens comerciais tenham em qualquer momento esta característica aérea e incomunicável? Um homem deitado na praia pode jogar pedras no mar sem nenhuma razão especial. Mas será que alguém acredita que o cervejeiro joga sacolas de ouro nos fundos partidários sem nenhuma razão especial? Esta teoria do segredo do financiamento político lamentavelmente deve também ser abandonada; e junto com ela as outras duas desculpas possíveis. Este segredo não pode ser justificado como uma piada sensacional nem como uma maçonaria comum da humanidade, nem como um indescritível capricho pessoal. Estranhamente, de fato, viola todas as três classes e condições de uma vez. Não está escondido para ser revelado: está escondido para permanecer escondido. Não é mantido em segredo porque é um segredo comum da humanidade, mas porque a humanidade não deve conhecê-lo. E não é mantido em segredo por ser insignificante demais para contar-se, mas porque é importante demais para permitir sua revelação. Em suma, o que temos é o fenômeno político real e talvez raro de um governo oculto. Temos uma doutrina exotérica (5) e uma esotérica. A Inglaterra é realmente regida pelo sacerdócio, mas não por sacerdotes. Temos neste país tudo o que já foi alegado contra o lado mau da religião; a peculiar classe privilegiada, as palavras sagradas impronunciáveis; as coisas importantes conhecidas apenas por poucos. De fato, não nos falta nada exceto a religião.
1 No original, “hide the thimble”, popular jogo de salão equivalente ao brasileiro “quente ou frio”. A tradução literal foi mantida devido ao trocadilho que se segue no texto. (N do T)
2 Assim no original. “Segredo de polichinelo”, isto é, segredo previamente conhecido por todos. (N do T)
3 Importante cruzamento na City de Londres. (N do T)
4 No original, “bathing-machine”, espécie de cabine sobre rodas usada como vestiário e abrigo para banhistas na praia, usada frequentemente na Inglaterra até o início do séc XX. (N do T)
5 Exterior, exposta. (N do T)