Uma defesa da humildade

G. K. Chesterton.

Capítulo A defense of humility do livro The Defendant, 1901.

Tradução: Leonardo S. Lopes,

Revisão: Raul Martins

O ato de defender qualquer uma das virtudes cardeais tem, atualmente, toda a intensa alegria de um vicio. Truísmos morais têm sido tão disputados que começam a soar como brilhantes paradoxos. E há, especialmente naqueles que defendem a humildade (nesta época de idealismo egoísta), algo de inexprimivelmente dissoluto.

Não é minha intenção defender a humildade em questões práticas. Campos práticos são desinteressantes, e, sobretudo nesse campo, a questão da humildade é esmagadora. Todos nós sabemos que a “divina glória do Ego” é uma grande chateação social; atualmente, todos nós valorizamos nossos amigos por atributos como modéstia, doçura e simplicidade de coração. O motivo pouco importa, todos nós respeitamos ardentemente a humildade – nos outros.

Mas podemos cavar mais fundo. Se os alicerces da humildade encontram-se apenas nas conveniências sociais, eles podem ser bastante triviais e temporários. Os egoístas podem ser os mártires de uma dispensação mais nobre, agonizando por um ideal mais árduo. A julgar pela relativa falta de conforto de suas condições sociais, esta parece uma sugestão razoável.

Há algo que deve ser observado de um ponto de vista eterno e intrínseco logo no início do estudo da humildade. A nova filosofia da autoestima e da autoafirmação declara que a humildade não é uma virtude, mas um vício. Se for esse o caso, é absolutamente claro que é um daqueles vícios que são parte integral do pecado original. Persegue-nos, com a precisão de um relógio bem ajustado, em cada uma das grandes alegrias da vida. Ninguém, por exemplo, jamais se apaixonou sem ceder a uma positiva perversão da humildade. Todas as pessoas naturais e cheias de vigor, como os garotos de escola, apreciam a humildade ainda no momento em que conseguem ser adorados como heróis. A humildade, novamente, é apresentada, tanto por seus defensores quanto por seus detratores, como o porquê do peculiar crescimento do Cristianismo. A razão óbvia e real desse fato tem sido muitas vezes negligenciada. Os pagãos insistiam na autoafirmação porque na essência dos seus credos estava a afirmação de que os deuses, embora fortes e justos, eram enigmáticos, caprichosos, e até mesmo indiferentes. Mas a essência do Cristianismo estava no sentido literal de Novo Testamento – um pacto com Deus que permitiu ao homem um claro livramento. Eles se sentiam seguros; reivindicavam palácios de pérolas e prata sob o juramento e selo do Onipotente; julgavam-se ricos com uma bênção irrevogável que os colocava acima das estrelas; e imediatamente descobriram a humildade. Este foi apenas outro exemplo do mesmo paradoxo imutável. É sempre o seguro que é humilde.

Esse exemplo particular sobrevive ainda nos avivalistas de rua. Eles são suficientemente irritantes, mas ninguém que os tenha realmente estudado poderá negar que essa irritação é provocada por duas coisas: uma hilaridade irritante e uma humildade irritante. Essa mistura de alegria e autoprostração é um tratamento um tanto quanto universal comum para ser ignorado. Se, atualmente, a humildade tem sido desacreditada como uma virtude, não é totalmente irrelevante pontuar que esse descrédito surgiu concomitantemente a um enorme colapso da alegria na literatura e filosofia correntes. Os homens reviveram o esplendor da autoafirmação Grega ao mesmo tempo em que reviveram a amargura do pessimismo Grego. Uma literatura surgiu e ordena a todos que se arroguem a liberdade de divindades autossuficientes ao mesmo tempo em que os expõe como maníacos lúgubres que deveriam estar agrilhoados como cães. É, certamente, um estado de coisas notável. Quando somos genuinamente felizes, julgamo-nos indignos da felicidade. Mas quando estamos a exigir uma emancipação divina, parece-nos certo que somos indignos de qualquer coisa.

A única explicação que se pode dar a essa questão pode ser encontrada na convicção de que a humildade tem raízes infinitamente mais profundas do que o homem moderno supõe; que ela é uma virtude metafísica e, poder-se-ia quase dizer, uma virtude matemática. Pode-se, provavelmente, testá-lo mais adequadamente através dum estudo sobre aqueles que francamente negligenciam a humildade e afirmam o supremo dever de aperfeiçoar e expressar o Ego. Essas pessoas tendem, por um processo perfeitamente natural, elevar seus grandes talentos culturais, intelectuais ou ainda morais a um grau maior de perfeição, impedindo, continuamente, a entrada de tudo aquilo que lhes parece menor do que eles mesmos. Ora, não há nenhum problema em barrar determinadas coisas, mas a esta ação segue-se um corolário mui simples – que ao fecharmos a porta para alguma coisa, essa mesma porta está sendo fechada para nós. Ao fecharmos a porta ao vento, podemos dizer que o vento, da mesma forma, fecha-nos a porta. Independentemente das virtudes que se podem alcançar por um triunfante egoísmo, ninguém pode, razoavelmente, fingir que se pode alcançar o conhecimento. Fechar as portas a um mendigo pode parecer correto o bastante, mas não faz sentido algum fingir saber todas as histórias que o mendigo poderia ter contado; e, contudo, essa é, praticamente, a afirmação do egoísmo que julga-se capaz de obter conhecimento através da autoafirmação. Um besouro pode ou não ser inferior ao homem — essa questão aguarda por ser demonstrada; contudo, ainda que o besouro esteja a quilômetros de distância do homem em qualquer escala comparativa, permanece o fato de que há, provavelmente, um ponto de vista próprio aos besouros do qual o homem é inteiramente ignorante. Se ele desejar conceber esse ponto de vista, dificilmente o alcançará, pois tropeçará, insistentemente, no fato de que não é um besouro. O expoente mais brilhante da escola egoísta, Nietzsche, com uma lógica ilustre e mortal, admitiu que a filosofia da autosatisfação levava-nos a olhar de cima para baixo aos fracos, covardes e ignorantes. Ora, olhar as coisas de cima para baixo pode ser uma experiência deliciosa, apenas não há nada, quer uma uma montanha ou um repolho, que possa, verdadeiramente, ser visto desde um balão. O filósofo do ego, sem dúvidas, vê todas as coisas desde um paraíso elevado e rarefeito; o único problema é que as vê de forma escorçada ou deformada.

Ora, se imaginarmos que um homem realmente desejasse, tanto quanto possível, ver todas as coisas como elas realmente são, ele certamente seguiria um princípio diverso. Ele procuraria despir-se, por um tempo, daquelas particularidades pessoais que tendem a dividi-lo daquilo que estuda. É tão difícil quanto, por exemplo, um homem examinar um peixe sem desenvolver uma certa vaidade em possuir um par de pernas, como se elas fossem o mais recente artigo de adorno pessoal. Mas, se é para um peixe ser compreendido, ainda que aproximadamente, esse dandismo psicológico deve ser superado. O estudante mais prudente da moralidade dos peixes irá, espiritualmente falando, decepar suas pernas. E, similarmente, o estudante de pássaros irá eliminar seus braços; o estudante que ama os sapos irá, com apenas um golpe de imaginação, remover seus dentes; e, o espírito que intentar penetrar em todas as esperanças e medos da água-viva haverá de simplificar sua aparência pessoal numa extensão deveras alarmante. Parecerá, portanto, que nossos grandes corpos e seus instintos naturais, dos quais somos orgulhosos, devidamente orgulhosos, afigura-se-nos mesmo um embaraço ao tentarmos apreciar as coisas como elas deveriam ser apreciadas. De fato, nós passamos por um processo de ascetismo mental, uma castração de todo o nosso ser, quando desejamos perceber o bem abundante em todas as coisas. É bom para nós, de tempos em tempos, sermos como uma mera janela – tão claros, luminosos e invisíveis quanto.

Numa obra deveras agradável, que na infância levara-nos aos bramidos, afirma-se que um ponto não tem nem partes nem magnitude. Ora, a humildade é a arte luxuosa de nos reduzirmos a um ponto, não a uma coisa estreita ou larga, mas a uma coisa absolutamente sem tamanho, de modo que, a partir dela, todas as coisas cósmicas são o que realmente são — de uma estatura imensurável. Que as árvores sejam altas e a grama rasteira é um mero acidente de nossas próprias regras e estatura. Mas, para o espírito que despiu-se, por um momento, de seus frívolos critérios temporais, a grama é uma floresta eterna, com dragões por habitantes; as pedras do caminho são como incríveis montanhas empilhadas umas sobre as outras; o dente-de-leão é como uma fogueira gigantesca iluminando todo seu redor; e os arbustos em seus caules são como planetas pendurados nos céus, cada um mais alto que o outro. Entre uma estaca de madeira de uma cerca e outra há novas e terríveis paisagens; aqui um deserto, com nada mais do que uma pedra disforme; acolá uma milagrosa floresta, da qual todas as flores nas árvores acima da nossa cabeça são como os tons do poente; aqui, mais uma vez, um mar cheio de monstros que nem Dante ousaria sonhar. Tais são as visões daquele que, como uma criança num conto de fadas, não tem medo de tornar-se pequeno. Enquanto isto, o sábio cuja fé jaz na magnitude e na ambição está, como um gigante, tornando-se cada vez maior, o que significa apenas que as estrelas estão a ficarem cada vez menores. Para ele, mundo após mundo desaba em insignificância; toda a paixão e intrincada vida das coisas comuns escapam-lhe, como a vida de um organismo minúsculo escapa a um homem sem microscópio. Ele eleva-se, contínuo, por eternidades desoladas. Ele pode encontrar novos sistemas, e esquecê-los; ele pode descobrir novos universos, e aprender a desprezá-los. Contudo, a visão elevada e tropical das coisas como elas realmente são — as gigantescas margaridas, o dente-de-leão a consumir o firmamento, a grandiosa odisséia dos oceanos multicoloridos, de árvores multiformes, da poeira como se de templos arruinados, de um cardo como a morte duma estrela — toda esta visão colossal haverá de perecer com o último dos humildes.

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