Vinho quando é vermelho





Gilbert Keith Chesterton (*1874/+1936)

Vinho quando é vermelho(1)

Capítulo do livro Considerando Todas as Coisas, publicado pela Editora Ecclesiae.

Tradução de Mateus Leme.

Suponho que haverá alguns olhos roxos (2)  em ligação com o recente manifesto assinado por uma série de médicos muito eminentes sobre o tema do assim chamado “álcool”. “Álcool” é, a julgar pelo som, uma palavra árabe, como “álgebra” e “Alhambra”, essas duas outras coisas desagradáveis. Nunca vi a Alhambra da Espanha (3); disseram-me que é um prédio baixo e desorganizado; refiro-me à construção bem mais respeitável em Leicester Square (4). Se for verdade, como suspeito, que “álcool” é uma palavra árabe, é interessante dar-nos conta de que o nosso termo geral para a essência do vinho e da cerveja e coisas assim vem de um povo que fez uma particular guerra contra eles. Imagino que algum idoso chefe muçulmano sentou-se um dia na entrada de sua tenda e, franzindo suas negras sobrancelhas e amaldiçoando com sua negra barba o vinho como símbolo do Cristianismo, perscrutou sua mente em busca de alguma palavra suficientemente feia para expressar sua antipatia religiosa e racial, e subitamente cuspiu a horrível palavra “álcool”. O fato de que os médicos tiveram de usar esta palavra em nome da clareza científica foi realmente uma grande desvantagem para eles na honesta discussão do tema. Pois o termo na verdade envolve uma dessas falácias de retórica (5)  que tornam tão difíceis esses problemas morais. É um grande engano supor que, quando um homem deseja uma bebida alcoólica, necessariamente deseja o álcool.

Faça um homem andar por dez milhas a um passo regular em um dia quente de verão por uma poeirenta estrada inglesa, e ele logo descobrirá por que a cerveja foi inventada. O fato de que a cerveja tem uma qualidade estimulante muito suave estará provavelmente entre as menores razões que o induzem a pedi-la. Em resumo, ele não deseja álcool de forma alguma; deseja cerveja. Mas, é claro, a questão não pode ser resolvida de uma forma tão simples. A verdadeira dificuldade enfrentada por todos, e especialmente pelos médicos, é que a posição extraordinária do homem no universo físico torna praticamente impossível tratá-lo de um jeito ou de outro de uma forma puramente física. O homem é uma exceção, seja o que for. Se não é a imagem de Deus, então é uma doença do pó. Se não é verdade que um ser divino caiu, então podemos apenas dizer que um dos animais enlouqueceu por completo. Em nenhum dos casos podemos realmente discutir muito sobre o corpo humano considerando-o simplesmente como o corpo de um animal inocente e saudável. Seu corpo está excessivamente misturado com a alma, como vemos no exemplo supremo do sexo. Seria bom avisar aos filantropos ricos e aos idealistas que este argumento do animal não deve ser usado impensadamente, mesmo contra os atrozes males do excesso; é um argumento que prova demais ou muito pouco.

Sem dúvida, é antinatural embebedar-se. Porém em um sentido real é antinatural ser homem. Sem dúvida, o operário intemperado é consumido pela bebida; mas ninguém sabe o quanto o operário sóbrio é consumido pelo trabalho. Ninguém sabe o quanto um filantropo rico é consumido ao falar; ou, em condições muito mais raras, ao pensar. Todas as coisas humanas são mais perigosas do que qualquer coisa que afete os animais – sexo, poesia, propriedade, religião. O verdadeiro argumento contra a embriaguez não é que ela evoca o animal, mas sim o demônio. Não evoca o animal, e se o fizesse não haveria grande importância, via de regra; o animal é uma criatura inofensiva e consideravelmente amigável, como qualquer um pode ver ao observar o gado. Não há nada bestial na embriaguez; e certamente não há nada embriagante ou mesmo particularmente vívido sobre os animais. O homem é sempre algo pior ou algo melhor do que um animal; e um mero argumento sobre a perfeição animal nunca o atinge. Assim, no sexo nenhum animal nunca é cavalheiresco ou obsceno. E da mesma forma, nenhum animal nunca inventou nada tão mau quanto a embriaguez – ou tão bom como a bebida.

A declaração desses médicos em particular é muito clara e firme; na atmosfera moderna, de fato, chega a merecer algum crédito por coragem moral. A maioria das pessoas modernas, é claro, provavelmente concordará com ela quando afirma que as bebidas alcoólicas são com frequência de enorme valor em emergências médicas; mas temo que muitas pessoas arregalarão os olhos com os enfáticos termos com os quais esses líquidos são descritos quando considerados como bebidas; mas não se contenta em declarar que a bebida com moderação é inofensiva: afirma distintamente que, de forma moderada, é benéfica. Mas imagino que, ao afirmá-lo, os médicos tinham em mente uma verdade algo contrária à opinião comum. Imagino que seja a experiência da maior parte dos médicos que ministrar um pouco de álcool para uma doença (embora frequentemente necessário) é talvez a forma moralmente mais perigosa de dá-lo. Ao invés de dá-lo a uma pessoa saudável que tem muitas outras formas de viver, você o está dando a uma pessoa desesperada, para quem é a única forma de viver. O inválido dificilmente pode ser culpado se, por algum acidente de sua situação errática e extenuada, chega a lembrar-se da bebida como a própria água da vida e usá-la como tal. Pois se beber é um pecado não é porque seja algo selvagem, mas porque é algo doméstico; não é na medida em que é anarquia, mas na medida em que é escravidão. Provavelmente a pior forma de beber é fazê-lo medicinalmente. Com certeza, a forma mais segura de beber é fazê-lo de maneira descuidada; isto é, sem se preocupar demais com nada, e especialmente sem se preocupar com a bebida.

O médico, é claro, deve ser capaz de fazer um bocado no sentido de restringir aqueles casos individuais em que há claramente uma sede perversa; e, à parte disso, a única esperança seria um aumento, ou melhor, uma concentração da opinião pública sobre o tema. Sempre sustentei consistentemente minha própria e modesta teoria sobre isso. Acredito que se por algum método o pub local pudesse ser um lugar tão definitivo e isolado quanto a agência local dos correios ou a estação de trens, se todos os tipos de pessoas passassem por lá para comprar todos os tipos de refrescos, haveria a mesma defesa contra a possibilidade de um homem comportar-se de maneira desagradável em uma taverna do que há atualmente nos correios: a simples presença de seus sensatos vizinhos. Em um lugar desses a espécie de lunático que quer beber uma quantidade ilimitada de uísques seria tratada com a mesma severidade com que as autoridades do correio tratariam um amável lunático que tivesse vontade de lamber uma ilimitada quantidade de selos. É um problema pequeno resolver se em algum desses casos seria empregada oficialmente uma recusa técnica. É uma questão essencial que em ambos os casos as autoridades pudessem comunicar-se rapidamente com os amigos e familiares da pessoa mentalmente comprometida. Pelo menos, a funcionária dos correios não balançaria uma fita de tentadores selos de seis centavos diante dos olhos do entusiasta enquanto este é arrastado para fora com a língua estirada. Se tornássemos a bebida aberta e oficial poderíamos ter avançado um passo na direção de torná-la descuidada. Em tais assuntos ser descuidado é ser são: pois nem os beberrões nem os muçulmanos conseguem ser descuidados sobre a bebida.

 

[1] Referência a Prov 23,31-33: “Não olhes para o vinho quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo e se escoa suavemente/ no seu fim morderá como a cobra, e como o basilisco picará./ Os teus olhos verão coisas estranhas, e tu falarás perversidades.” (N do T)

[1] No original, “wigs on the green” [perucas na grama], expressão popularizada no séc XIX com o significado de confusão, luta física, em que as perucas dos envolvidos podiam ser arrancadas no calor do conflito.(N do T)

[1] Complexo de palácios e fortaleza construídos em Granada, Espanha, durante a dominação muçulmana. (N do T)

[1] Chesterton refere-se ao Teatro Alhambra, em Leicester Square, no West End de Londres. Inaugurado em 1854, foi demolido em 1936. (N do T)

[1] No original, “begging of the question”, petição de princípio ou petitio principii. Trata-se de uma falácia retórica que consiste em assumir uma premissa arbitrariamente como verdadeira para daí tirar uma conclusão, por exemplo: “Eu estou certo porque sou seu pai e os pais estão sempre certos.”. (N do T)

 


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